26.4.12

Um fantasma corre na Europa – A carência alimentar


Um texto de Isabel do Carmo, enviado pela autora para publicação neste blogue (originalmente no Público de 11/4/2012, sem link). 

A crise e a austeridade têm os seus aspectos concretos que atingem aqueles a quem a desigualdade coloca nas escalas intermédias e baixas. Calcula-se que 33 milhões de europeus estejam em risco de carência alimentar. Entre eles estão com certeza alguns milhões dos países periféricos, como o nosso, onde a crise é mais profunda. 

Em língua inglesa e nos documentos internacionais tem sido usado o termo malnutrition, que em português técnico tem sido traduzido por malnutrição, mas que poderia ser expresso pela palavra má-nutrição. Este termo significa que o corpo humano não recebe quantidade suficiente de energia (calorias) ou proteínas ou vitaminas ou sais minerais para manter a saúde e o normal funcionamento dos órgãos. Ora acontece que numa região como a europeia, as pessoas podem ter acesso às calorias suficientes ou até excessivas, mas não terem proteínas ou vitaminas ou sais minerais nas quantidades de que o corpo necessita. Isto resulta de não terem acesso aos alimentos que os integram. 

Vem à cabeça o ferro, o mineral de que há mais carência nas pessoas dos países desenvolvidos. E seguem-se o cálcio, a vitamina D, as vitaminas do complexo B, a vitamina C, o zinco, o iodo. Espantosamente, em Portugal, um país de mar, a equipe do Professor Limbert do IPO de Lisboa, tem provado a carência de iodo em largas amostras de mulheres grávidas. 

Tal como diz o Dr. Olle Ljungqvist, um dos investigadores que se tem dedicado ao assunto da desnutrição na Europa, a má-nutrição não é um espectáculo das ruas da Europa. É um problema oculto dentro de casa e nas residências de acolhimento. É a ponta do icebergue de um sério problema de saúde. Os idosos e as pessoas que vivem isoladas são os que correm maior risco. 

Calcula-se que 25% das pessoas admitidas nos hospitais europeus por qualquer doença, estão malnutridas ou em risco de má-nutrição. Na desenvolvida Suécia um estudo revelou que 15% das pessoas dos 75 aos 80 anos vivendo em casa, estão em risco de má-nutrição. 

No Reino Unido e na Holanda estudos em larga escala mostraram que 1 em cada 4 indivíduos que são hospitalizados sofrem de má-nutrição. 

Calcula-se que no Reino Unido 3 milhões de pessoas sofrem de má-nutrição. E como esse é um país onde estas coisas são vistas com atenção científica, calcula-se também que os custos com o tratamento das doenças relacionadas com a má-nutrição são de 15 milhares de milhões de euros. Ou seja, não se previne a situação social antes, para vir a gastar muito mais depois. 


Má-Nutrição. Sociedade Doente 

De facto a má-nutrição é causa de doença: vulnerabilidade para as infecções por baixa imunidade, prolongamento das doenças e das convalescenças, dificuldade de cicatrização de feridas de doenças crónicas, maiores tempos de hospitalização, cansaço no trabalho, gravidezes com défices, partos prematuros, dificuldades no crescimento e desenvolvimento de crianças e jovens. 

Não, não estamos perante o quadro confrangedor da fome das populações africanas. Estamos perante um quadro subreptício, larvar, escondido, que corrói o tecido social, diminui a energia da sociedade, afecta o trabalho e a reactividade humanas. 

Algumas estruturas oficiais europeias têm chamado a atenção para o problema e nomeadamente aquando da Presidência Europeia na Polónia em 2011 representantes do Parlamento Europeu e de sociedades científicas e profissionais elaboraram um documento de chamada de atenção para todos os governos europeus. Todavia os governos europeus têm tido outras preocupações – o défice, os bancos e a sua própria elegibilidade. 

E em Portugal o que é que se passa? Para já, nem sabemos o que é que se passa, porque apenas estudos localizados nos dão alguma ideia das carências específicas. Mas sabemos que, de acordo com a informação do Ministério da Saúde, a propósito dos isentos de taxas moderadoras, 5 milhões e 200 mil pessoas acima dos 12 anos pertencem a agregados familiares com uma soma total média mensal de 623 euros ou menos. Está tudo dito. 

Os idosos que, sozinhos em casa, se alimentam de chá, algum leite, pão, margarina e bolachas, não têm fome. Mas de facto têm fome de muita coisa. Por causa disso terão pseudo-demências e terão facilmente infecções respiratórias. Vão até ao hospital onde não lhes faltarão antibióticos e soro. Saem de lá tratados, mas debilitados. E voltarão e voltarão. Até que, numa derradeira vez, irão para ficar – os nossos hospitais são o nosso rio Ganges. Estes nossos idosos não têm energia para dar um tiro na cabeça em frente do Parlamento. Podemos estar descansados. 

Esta situação tem causas e soluções económicas e sociais. Não vai lá com caridade. Mas os técnicos de saúde têm o dever de conhecê-la e encontrar as soluções possíveis dentro daquilo que está nas nossas mãos. 
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1 comments:

xatoo disse...

amanhã, a não perder, vai-se fazer um debate sobre as mentiras da dívida com Charles-André Udry, António Garcia Pereira e Renato Guedes.
O CADPP convida todos os interessados a assistirem e participarem neste debate que visa expôr as mentiras da dívida, tais como esta "ser de todos" e causada por vivermos "acima das nossas possibilidades".

As mentiras da dívida são o canivete suíço com que tudo se faz em matéria de ataques aos interesses gerais da população portuguesa: espoliação de bens públicos, destruição do estado social, pacotes de austeridade, etc.
A ordem de encerramento da Maternidade Alfredo da Costa, o ataque ao SNS e a extorsão das pensões de reforma pagas ao longo de vidas inteiras de trabalho são apenas duas das consequências mais recentes dessas mentiras.
Enviamos este convite pensando que, como pessoas directamente afectadas pelas medidas de austeridade em curso, poderá ser do vosso interesse participarem neste debate.
Cordialmente

http://www.cadpp.info/2012/04/e-ja-amanha.html