5.4.12

Uma noite, uma vida – por José Tengarrinha


Depois do texto de Helena Pato, aqui publicado, agora este, do próprio JT, com base em apontamentos escritos na prisão de Caxias, entre a noite do 25 de Abril e a libertação (*). 

«O inimigo» - segredava-me uma voz interior. Mas, mesmo com esforço, não vejo o inimigo naquele homem que pretende mostrar-se seguro e dominador, mas que é vulgar, pegajoso, mole, quase grotesco. Até a fria lâmina do olhar de um ou outro agente obriga apenas, não á defesa, mas a um esforço para saber o que está para além desse olhar. Faço-o, como sempre, apenas por curiosidade. E, tal como das vezes anteriores, logo percebo que muitos dos que se apresentam seguros e dominadores oscilam quando se vêem observados no fundo.
À medida que as horas correm, vou sentindo modificar-se a atitude dele. Endurecendo sempre. A última coisa que disse, num grito, já a noite avançava pela madrugada, foi uma ameaça de morte.
Havia muito de absurdo em tudo aquilo, com uma mistura de farsa e tensão intolerável.
Lá fora, na noite, o forte era uma massa sem contornos. Mas não dava a impressão de estar adormecido.
Depois de sair da carrinha, no pátio interior, ao subir as escadas, ao atravessar os corredores silenciosos, sentia-se, quase se poderia apalpar a tensa expectativa. Redobrados cuidados, maior vigilância no sector da incomunicabilidade para onde me levaram. Isolamento. Cela 51. 

Está na minha frente, imóvel e duro, alto, louro de barba e cabelo, pés afastados, no meio da cela. Uma G3 pendente da mão. Dois outros, atrás, um de cada lado, também armados.
Tudo fora precedido do estrondo da porta do fim do corredor, aberta com violência, do pisar cadenciado das botas até à frente da minha cela, do rangido agudo da fechadura. Avançara na minha direcção e assim ficara, especado. 

Talvez nunca pensasse que fosse desta maneira. Não, nunca pensara. Sempre pensei que fosse uma coisa suja, revolta, misturada de angústias e de medos, de estrangulamentos no estômago, de voz apertada na garganta, de vertigens que nos secam a boca e nos fazem perder a noção do tempo que fica como um novelo confuso e denso. Pensei que nos arrastassem para o pátio, brutalmente, entre gemidos, gritos e choros. Pensei que fosse apenas um momento, terrível mas breve: que nos olhássemos ainda uns aos outros, admirando a coragem de alguns, vendo o medo dos outros; que fizesse apelo a todas as energias, mas que seria muito difícil. Vacilava. Seria com certeza uma coisa rápida, fulgurante. Colocar-nos-iam lado a lado. Talvez no momento decisivo conseguisse levantar a cabeça, talvez dobrasse as pernas apenas depois dos tiros partirem. Estava a ver-me, num esforço de antecipação, para me preparar quanto possível. O isolamento da cela pesava cada vez mais. 

Ao cair da tarde, informações dispersas e muito vagas falavam de um golpe militar que derrubara o Governo. Bem sabia que se preparava um golpe de militares democratas. Mas também me recordava de que, antes da minha prisão, se pensava estar iminente um golpe de extrema-direita. Teria vantagem quem arrancasse primeiro. Quem se teria antecipado?
Foi assim que a noite passou, na previsão de uma manhã que poderia ser de libertação ou de morte. Não havia nada a fazer. Nem sequer barricar a porta, porque abria para fora. Havia apenas que esperar.
Uma noite muito estranhamente calma, sem os ruídos habituais. Nem os passos abafados do guarda do corredor, nem o rumor longínquo dos carros na marginal. Em frente da minha janela, a pouco mais de um metro, a alta barreira de terra e pedra fecha quase completamente a visão.
Uma voz aguda, nervosa, salta de uma das celas que dão para a barreira:
«Atenção às janelas! Fiquem fora da direcção de tiro!»
Certo. Podiam acabar connosco assim mesmo, da janela. Arranjei uma posição segura e relativamente cómoda, protegido pelo ângulo da parede.
Se tivesse sido um golpe de extrema-direita estávamos irremediavelmente liquidados. E mesmo sendo um golpe democrático, poucos de nós se não lembrariam, agora, das ameaças que sempre tinham ouvido nos interrogatórios:
«Se isto um dia vira, antes de nos entregarmos acabamos com os que estão no isolamento»
Ainda dois dias antes, no último interrogatório, o inspector ameaçara:
«Desta vez não sais daqui vivo! Haja o que houver, não sais daqui vivo»
Podia ser apenas ameaça, para ver se me fazia falar. Mas havia uma raiva na sua voz que não enganava. Eles sentiam-se acossados e a perder o domínio da situação. Num momento de desespero, tudo podia acontecer. 

Sabia que no forte não se dormia. Ali, no isolamento, cada companheiro na sua cela estava acordado. Uma solidão insuportável. Precisava de ouvir uma voz, sentir uma presença humana.
Aproximei-me da janela, abri-a lentamente. Encostei a cara à parede, fiz concha com as mãos, como de costume, disse em voz surda:
«Sena, como estás?»
Ouvi-o levantar-se da cama. A voz, também surda:
«Bem. E tu?»
«Bem», respondi.
Foi tudo. Depois, as longas horas passadas num torpor de sono, de sonho, de recordações e de realidade.
Pensava, às vezes, que gostaria de escrever, mais tarde, o que estava agora a viver, se me fosse dada a oportunidade. Ri-me porque tive desde logo a tendência para começar a arranjar «truques» para conseguir efeitos literários. Ri-me porque o «truque» era aquilo mesmo, um homem ali metido, num pequeno buraco, só, e apenas falando consigo, aguardando a manhã que lhe traria a morte ou a liberdade.
Momento decisivo em que o que nós somos é que conta. O que somos realmente, não aquilo que julgamos ser ou aquilo que queremos fazer crer que somos. Energias, fraquezas, medos, a natureza frágil, muito que desconhecíamos em nós próprios, muita coisa que nos obrigavam a mostrar, muita coisa que nos esforçávamos por mostrar.
Mas naquela noite, arrastada de silêncio e solidão, não havia lugar para efeitos fáceis ou para enganos.
Ter consciência disso dava-me uma satisfação profunda, um autêntico, perfeito sentimento de libertação. Creio que foi isso o que, no meio da angústia e do medo, me fez desaparecer a angústia e o medo. Me deu, até, alguma calma, Mas uma calma que, ao mesmo tempo, tinha muito de atordoamento, de vertigem. Como se, ao entrar profundamente no âmago da realidade, me sentisse libertado dessa mesma realidade. Lembrava-me de ler que em situações idênticas se sente como que um desdobramento da personalidade, ao ponto de um indivíduo se olhar a si próprio como a um estranho. Não era assim agora. Era eu, cada vez mais eu, cada vez mais pesadamente eu. Começando talvez, até, a perder reflexos, a embotar o sentido da captação das coisas do exterior e a ter um a capacidade de reacção cada vez mais lenta. Talvez fosse do frio. O frio da madrugada que já começara a entrar pela janela. O frio que não gelava, mas tornava o corpo tenso e inseguro. Aumentando o torpor, pastoso e turvo.
De repente, tudo se precipitou.
Na manhã que já rompia, subia, num crescendo, uma amálgama de sons de motores de camiões, de chamamentos, de ordens militares cruzadas, em altos gritos. Por uma nesga da janela vi pára-quedistas colocarem-se em pontos altos, à volta do Forte. Por fim, quando a porta da minha cela se abriu com estrondo e eles deram alguns passos na minha direcção, perguntando o meu nome, estava vertiginosamente tenso, mas tranquilo. E só então compreendi que, acontecesse o que acontecesse, tudo estava certo, lógico, no seu lugar. Por isso, foi quase com naturalidade que ouvi o oficial dizer bruscamente:
«Pode sair. Está livre.» 

(*) Redigido com base em notas escritas na noite de 25 para 26 e no dia 26 de Abril de 1974, Combates pela Democracia, Seara Nova. 1976. 
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1 comments:

folha seca disse...

Cara Joana Lopes
O texto da Helena Pato, complementado com este do Tengarrinha, para além da emoção que nos causa reforça a convicção de que vale a pena lutar pelos ideais em que acreditamos.
Um abraço
Rodrigo