28.7.12

Helena Cidade Moura (1924-2012) − A altiva senhora que queria ensinar a ler



N.B. − No passado dia 26, foi possível ler, no Público (sem link), um excelente texto de António Melo, que me foi agora enviado pelo autor em versão alargada e que hoje divulgo com muito prazer.

Uma mulher de amores calmos, mas enérgicos. Bebeu-os, primeiro, entre os seus camaradas de curso, uma ‘colheita vintage’ da Faculdade de Letras de Lisboa, em paralelo com a devoção do companheiro e pai dos seus filhos. Mais tarde, criados estes, à beira da cinquentena, dedicou-se por inteiro aos amigos do MDP/CDE. Sem esquecer a tutelar figura paterna, o insigne filólogo Hernâni Cidade. Nem os humilhados e ofendidos dos bairros operários.

Um curso de excepção o de Helena Cidade Moura. Dele saíram Maria de Lourdes Belchior, Matilde Rosa Araújo, Maria Barroso, Sebastião da Gama, Lindley Cintra, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues… Era um tempo em que na Europa se matava e morria num genocídio sem nome e, em Portugal, o racionamento trazia a fome e o Estado Novo a paz podre dos cemitérios, como escreveu António Sérgio.

A Helena Cidade Moura que na passada sexta-feira, 21 de julho, se despediu de nós tinha uma imagem de marca – a sua madeixa branca que se lhe prendia entre os cabelos, puxada atrás como se fosse uma asa a querer libertar-se. Não era a única. Nos elogios que cobriram o féretro sublinhou-se o seu papel na alfabetização de adultos e a vivência política no Portugal democrático. Talvez porque os tempos são árduos e secam a memória próxima, ficou por recordar a associação cívica Civitas e o esforço que manteve até ao fim para elevar a literacia da sociedade portuguesa e melhorar culturalmente as suas elites.

A jovem Helena foi uma menina prendada. Os pais e avós, de raízes alentejanas, entre Évora e o Redondo, eram proprietários abastados e a vida lisboeta cedo se tornou o seu ambiente familiar, com um pai absorto na erudição clássica e uma mãe dedicada ao lar, como era de regra.

A escolha do curso de Românicas, como então se designava a área dos estudos das literaturas latinas, apareceu como coisa natural, por ser menina e, sobretudo, por em casa se respirar em contínuo o pó dos livros. A expectativa de uma carreira académica era natural e ainda hoje fica a interrogação porque a não abraçou, dado que a sua vida profissional, em paralelo com a da intervenção cívica, foi preenchida pela investigação e ensaio literário. Na Biblioteca Nacional há 138 entradas com o seu nome, na maioria dedicada a Eça de Queiroz. Na criação pessoal não tem obra de ficção, mas a poesia foi um terreno que lavrou com esmero. A primeira publicação, de 1955, teve por título “O Mundo sem Limites” e seis anos depois editou, com a chancela de Livros Portugal, “O Tempo e a Esperança”. O seu terceiro livro, da Ática, saiu em maio de 1963, em capa branca, com alto-relevo da editora, e recebeu o nome de “Memória e Ritual”, onde a poesia surge decantada e é de uma pureza cristalina. Parecia que forma e substância se tinham encontrado na sua linguagem, mas afinal foi uma despedida.

A sua poesia reflecte dois aspectos constituintes da sua personalidade: a convicção cristã e expressão da sua singularidade. A quem a conheceu mas com ela pouco conviveu deixou uma imagem de uma pessoa distante, que olhava de cima, até porque para os padrões portugueses era uma mulher alta. Uma frieza acentuada pelo rigor com que desempenhava as tarefas que aceitava. Num país onde ser pontual não é imagem de marca, Helena Cidade Moura deve ter perdido muito tempo à espera dos outros. É mais do que provável que por vezes tenha expressado com rispidez essa indelicadeza, afastando com alguma acrimónia as desculpas esfarrapadas dos interlocutores em falta.

Não era de todo essa a Helena que conheceram os que com ela privaram, como testemunha o camarada de curso, Urbano Tavares Rodrigues, ou o parceiro das lides políticas no MDP/CDE, José Manuel Tengarrinha. Deste lado, o que ressalta na emoção do testemunho é a mulher afectiva, sempre com um apontamento de ternura nos diminutivos que inventava para os distinguir, um convite permanente de amizade, uma capacidade sem falha para amar os seis filhos e ainda sobrar outro tanto para alegrar os que para a sua casa convidava. Acrescente-se, porém, que era reduzido este círculo de amigos que podia entrar na privacidade do lar. A sua singularidade era exigente na eleição dos mais próximos, mesmo se a sua dedicação cristã aos necessitados fosse sem limites.

A sua convicção religiosa católica, sem ser beata, nunca foi questionada. Acaso será mais exacto dizer que a sua profissão de fé era, sobretudo, cristã, o que a fez ligar-se ao grupo dos católicos progressistas, mais próximos do testemunho dos Evangelhos do que da liturgia da Igreja, mesmo se a ligação foi pontual. Joana Lopes, autora de “Entre as Brumas da Memória – os católicos portugueses e a ditadura”, que foi uma activista deste grupo desde 1962, realça a presença do seu nome no “Manifesto dos 101” católicos, de 4 de outubro de 1965, onde se critica o que os subscritores consideram de “cumplicidade” entre a hierarquia da Igreja católica e o regime, em relação à guerra no Ultramar. Foi, também, um apoio à oposição democrática em ano de eleições para a Assembleia Nacional, com o triunfo garantido e em exclusivo das listas da União Nacional.


Compromisso político

A outra Helena, a da intervenção cívica e política, levou tempo a afirmar-se. A sua figura erecta, de deputada eleita pela Aliança Povo Unido, na legislatura de 1980, que deu a segunda maioria absoluta à AD de Sá Carneiro, bem como na legislatura de 1983/85, do governo de bloco central Mário Soares/Mota Pinto, marcou a presença de uma personalidade sénior, a aproximar-se dos sessenta anos.

Esta Helena, salienta Tengarrinha, surgiu na campanha eleitoral de 1969, desenvolta e activa, no quadro das “comissões democráticas eleitorais” (CDE). Ainda não existia o MDP/CDE, o que só vai acontecer em 1974, já em plena polémica partidária democrática.

Ela trouxe, diz Tengarrinha, uma maneira nova de fazer política, renovando o vocabulário de uma “oposição democrática” desgastada por um combate de décadas contra o Estado Novo. “As suas qualidades pessoais, intelectuais e de dedicação levaram-na naturalmente à direcção política”, trazendo para o centro da agenda política questões como a alfabetização e a participação cívica, o que contribuiu para dar às CDE a vivacidade de movimento cívico e não apenas de movimento eleitoral.
Num ápice, o nome de Paulo Freire e o seu método de alfabetização de adultos tornou-se popular e despertou entusiasmo nas camadas universitárias, dos católicos aos marxistas-leninistas, mesmo se com motivações diferentes – apostólicas, de um lado, de consciencialização política do outro.

Urbano Tavares Rodrigues, que então militava já no PCP clandestino, recorda-se da participação de Helena Cidade Moura em manifestações onde era forte o risco de intervenção da polícia de choque e destaca a “enorme firmeza e coragem física” da sua antiga condiscípula. Apenas lhe encontrando um defeito – a aproximação, no quadro da educação de adultos, a José Hermano Saraiva, também recentemente desaparecido. Saraiva era ministro de Salazar e, no contexto da oposição à ditadura, essa colaboração podia ter uma outra interpretação.

Não teve. Helena Cidade Moura dialogou com Hermano Saraiva na esfera em que tinham afinidades de programa e nada mais. As susceptibilidades eram vivas por esse tempo entre os meios da oposição e Maria Barroso, sem deixar cair a amizade com a antiga companheira de estudos – “se bem que mais velha um ano” – salienta que “o tema das conversas era a família”, e que, embora “respeitada e querida nas relações pessoais”, o certo é que as afinidades políticas as tinham afastado. Maria Barroso foi para a CEUD, coligação eleitoral criada pela Acção Socialista Popular, com Mário Soares, e Helena Cidade Moura, seguiu, com o marido Domingos Moura e o cunhado, Francisco Pereira de Moura, a corrente católica progressista que engrossou a CDE.

O Movimento Democrático Português / CDE constituiu-se em partido em novembro/dezembro de 1974, entre forte polémica interna, pois a corrente socialista afecta a Mário Soares entendia que o papel político da CDE esvaziava-se com a instauração do regime democrático, sendo o seu futuro o de um clube de reflexão crítica. A legislação eleitoral determinou que só os partidos podiam apresentar-se aos actos eleitorais, o que foi entendido por Tengarrinha e pela restante direcção, onde estava Helena Cidade Moura, como uma tentativa de afastamento da CDE.

Foi numa assembleia que decorreu no Instituto Superior Técnico que se decidiu a passagem a partido político, com a sigla MDP/CDE, para evitar que outras organizações se apropriassem desse passado histórico.

João Corregedor da Fonseca, actualmente dirigente da Intervenção Democrática, recorda essa decisão como uma celebração de reconhecimento de uma oposição anónima e dedicada, que desde 1965 trabalhava pelo advento da democracia, onde “católicos, marxistas, socialistas e independentes tiveram um papel decisivo”. Entre eles a “incansável Helena Cidade Moura”.

Há, de certa maneira duas Helenas – a do antes e a do depois do MDP/CDE. A universitária Alfreda Cruz, membro do grupo de geografia de Orlando Ribeiro, destaca esse aspecto e nota-lhe uma particularidade – a dos amigos e a dos companheiros. A afectividade para com uns e os outros era a mesma, mas só os primeiros, os do antes, compunham o “círculo da privacidade”, com acesso à casa do Estoril.

Alfreda Cruz, que seguiu o percurso do MDP/CDE até à sua dissolução em movimento cívico e constituinte da Política XXI, para as eleições ao Parlamento Europeu em 1994, caracteriza a sua antiga companheira de partido como “apóstola da educação” e enaltece o seu trabalho constante no Gabinete de Estudos e Planeamento (GEP) do Ministério da Educação para “definir a rede escolar” e criar os cursos de alfabetização, “apesar de nunca ter pertencido aos quadros do Ministério”. Ela “bateu-se na política e fez dela um terreno privilegiado de intervenção para a educação do povo” e nunca demonstrou qualquer “desgosto por não ter sido chamada a desempenhar um cargo institucional no ministério ou no governo”.

Helena Pato, fundadora do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, que então tinha um papel influente na definição das políticas educativas, recorda a “determinação de Cidade Moura nas tarefas que se propunha” e como alguém que se interessava mais pelo que havia a fazer do que pelos ganhos políticos que se podiam recolher.

Foi esse lado «desinteressado» que lhe deu reconhecimento no MDP/CDE e esse é um ponto concordante nas recordações de Tengarrinha, Alfreda Cruz e Corregedor da Fonseca, que, sublinham, mantiveram a amizade pessoal, para lá das divergências políticas que os afastaram em 1987, quando o MDP/CDE decidiu apresentar-se autonomamente às eleições para o Parlamento Europeu.

Este foi um momento de tensão interna grave, comparável ao de novembro de 1974, que levou à formação do partido, que, de alguma forma, anuncia o último combate do MPD/CDE.


Compromisso cívico

Ainda hoje, a formulação do pomo de discórdia é feita de modo diferente e em política as palavras têm peso.

Para Corregedor da Fonseca, que deixou o MDP/CDE e esteve na criação da Intervenção Democrática (ID), que permaneceu coligada eleitoralmente com o PCP, o que esteve em causa «foi a quebra da unidade de esquerda». Para Alfreda Cruz, com a plena concordância de José Tengarrinha, a questão foi «o fim da unicidade» partidária, atitude que «o PCP não aceitou e não se discute o seu direito» de assim proceder.

A posição de Helena Cidade Moura que «sempre pugnou pela independência do MDP/CDE» e não era «uma apóstola da coligação APU», na expressão de Alfreda Cruz, foi a de sempre: firme na decisão tomada.

Passou a ser uma presença quase constante ao lado de Tengarrinha na defesa das decisões tomadas, em contraste com outros membros da direcção, que preferiram retirar-se para a vida académica ou para a vida profissional, para pouparem as amizades antigas.

Tem o seu dedo, mesmo se a letra é Joaquim Pessoa e a música de Pedro Osório, ambos já falecidos, o manifesto da campanha eleitoral de 1987, onde se exprime o corte com o PCP. Vale a pena citá-lo: «Não parar o vento // não erguer o muro // Este é o momento de fazer futuro. // Desta vez é outra voz // é a voz de quem sonha // que a vida plena // não é só viver // é, também, escolher!

O resultado foi paupérrimo, o MDP/CDE obteve 0,49% dos sufrágios. Em 1989, também para o Parlamento Europeu, tentou-se o recurso a uma ‘cabeça de cartaz’. O candidato foi António Victorino d’Almeida, que encontrou como adversário outra ‘cabeça de cartaz’, Miguel Esteves Cardoso, proposto pelo Partido da Terra. Foi uma campanha interessante, mas igualmente pobre em termos de votos recolhidos – 1,37%.

A última decisão política foi, provavelmente, a da criação da Política XXI, com o grupo da Plataforma de Esquerda que se recusara a entrar no PS. Em 1994 ainda concorreram às eleições europeias, com Ivan Nunes em cabeça de lista, sem grande êxito. Entretanto a Política XXI estabeleceu uma plataforma de negociação com a UDP e o PSR, com vista à constituição do Bloco de Esquerda e alguns seguiram esse caminho, como Alfreda Cruz, Mário Casquilho, Silveira Ramos. Outros evitam-no, como Helena Cidade Moura e Amaro Espírito Santo, que se aproximam do PS, quando António Guterres, católico como eles, assume a liderança do partido.

O MDP/CDE de Tengarrinha e Helena Cidade Moura tentou ainda reflectir sobre os caminhos para «um partido que sempre foi mais movimento do que partido». Cidade Moura propôs que se investisse na promoção das associações cívicas e ela própria deu o exemplo criando a Civitas, com o coronel Vítor Alves. A Associação para a Defesa e Promoção dos Direitos do Cidadão, Civitas, surgiu em 1989 e propunha-se ter «uma intervenção de âmbito nacional» segundo uma «lógica de cultura em rede».

Helena Cidade Moura aproveitou esta nova estrutura para lançar um projecto que, de certo modo era a continuação da alfabetização popular – a promoção da literacia na sociedade e a sua aceitação como valor entre as elites.

Naquela que foi provavelmente a sua última intervenção pública, a apresentação em 2007 do livro colectivo “Literacia em Português”, Helena Cidade Moura confirmou o seu projecto de intervenção cívica e cultural: «Pretende­-se com este livro difundir o interesse e a capacidade de análise despertados para o fenómeno da Literacia, que tem atrasado, nos últimos anos, o nosso caminhar colectivo, tem afectado a capacidade de organização da nossa vida em comum, tem ajudado a adormecer a consciência cultural do País».

Helena Cidade Moura casou com Domingos Moura, (1920-2007), catedrático do Instituto Superior Técnico, e foi mãe de seis filhos: Helena Maria, Domingos António, Miguel, Luís Manuel, Maria Margarida e Maria da Graça. 

A todos, a merecida homenagem pelos pais que tiveram.
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4 comments:

Unknown disse...

Um excelente texto de um jornalista que muito admiro. Um profissional a sério. Rigoroso nas pesquisas, com uma belíssima escrita, limmpa de floreados, corajosa nas afirmações. Parabéns ao António Melo. Obrigada, Joana, por nos teres facultado um artigo que, a não ser deste modo,ficaria, para já,destinado a meia dúzia de leitores de um jornal cada vez mais «pouco lido».
Boa viagem pelo Leste!
Helena Pato
Helena Pato

Joana Lopes disse...

Obrigda, Lena.
Cada vez acho mais importante divulgar textos destes também na net, por dois motivos: porque pouca gente lê jornais e porque fica online.

Cá vou andando por aqui!!!

Júlia Coutinho disse...

Excelente o artigo Do António Melo que faz um historial bem necessário sobre a CDE e o MED/CDE.
Apenas aponto um erro: quando afirma que tanto Joaquim Pessoa como Pedro Osório já faleceram ambos. Na verdade Joaquim Pessoa continua vivo e bem activo, felizmente.
Um abraço
julia coutinho

Rosa Machado disse...

Pela data do seu nascimento, e pelos nomes dos outros que ao mesmo tempo frequentaram a "velhinha" Faculdade de Letras, deve ter sido aluna de Elza Paxeco, a primeira senhora a doutorar-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mulher de saber profundo, muito exigente para consigo e para com os alunos. Infelizmente não resistiu às pressões da época tendo pedido para sair. No Centenário da Universidade de Lisboa, nem houve verba para um álbum onde o seu nome (e de outros) constasse ....
Rosa Machado