6.10.12

Intervenção de Mariana Avelãs no Congresso Democrático das Alternativas




Não participei nas actividades do Congresso, mas faço questão de divulgar este belíssimo texto que a Mariana Avelãs leu na sessão de encerramento.

«Boa tarde. Queria começar por saudar o Congresso e agradecer o convite para estar aqui.
Mas agradecer também aos organizadores do Congresso a existência de um espaço para crianças, o Congressito. Demasiadas vezes, o facto de terem crianças a cargo implica o afastamento das mulheres da vida política, e pequenos passos como este fazem toda a diferença no sentido da inclusão e da igualdade.

E se fui convidada enquanto ativista e subscritora do texto que serviu de convocatória à manifestação de 15 de setembro, queria deixar bem claro três coisas:

1. Não falo em nome dos movimentos sociais, nem sequer aqueles a que pertenço.
2. Ninguém fala em nome de um milhão de pessoas que saiu à rua.
3. Não falo sequer em nome dos 29 subscritores do texto «Que se Lixe a Troika! Queremos as nossas Vidas!», mas em nome individual, como cidadã.

Estamos aqui no dia em que se celebra a Implantação da República, e eu quero começar por confessar que é um evento tão distante no tempo que eu dou a soberania popular como um dado adquirido, sem refletir frequentemente sobre ela. Mas tenho sempre presente que, se a soberania popular é para mim um dado adquirido, é porque ao longo de muito tempo houve gente que se uniu, que lutou por uma ideia, que recusou a inevitabilidade do sistema em que vivia. Ou seja, se aquilo que foi para muitos uma utopia durante muito tempo é, hoje, para mim, um dado adquirido, é porque houve muita gente que fez por isso, e de muitas maneiras.

Quando se fala em democracia, o evento que me vem à cabeça, obviamente, não é a implantação da República, mas o 25 de Abril. Com a importância acrescida de eu ter nascido em 1974, e portanto pertencer à primeira geração que viveu sempre em liberdade e democracia. Mas não é preciso ter vivido o fascismo para saber que se respirei todos os segundos da minha vida em liberdade, foi porque muita gente se uniu, lutou por uma ideia, recusou a inevitabilidade do sistema em que vivia. Crescer em liberdade significa, é verdade, e ainda bem, digo eu, dar por garantidas muitas das coisas que abril nos trouxe: o Sistema Nacional de Saúde, a escola pública, o emprego e com direitos, o estado social e a confiança num futuro que podia ser cada vez melhor.

Mas nascer em 1974 tem também um peso tremendo: o peso do "E agora?" O que é que se faz depois de uma revolução? O que é que se pode fazer que se compare a uma revolução? Nada. Mas a resposta é simples: o legado tremendo com que viemos ao mundo não foi uma caixa fechada chamada "democracia", para nós agradecermos e irmos fazer outra coisa qualquer. O nosso legado é a responsabilidade de construir a democracia, e esta é umas das poucas alturas em que direi "porque não há alternativa". Quando optamos por abdicar dos mecanismos de participação na democracia também estamos a construir a democracia: é uma democracia mais débil e cada vez mais em perigo, mas é uma democracia pela qual somos todos responsáveis.

Uma construção ativa da democracia só é eficaz se estivermos de acordo que ela pode ser feita de muitas maneiras. Participar nos movimentos sociais é apenas uma delas. E os movimentos sociais são um mundo mais vasto do que por vezes se imagina. Há movimentos sociais em defesa de grupos específicos da população (as mulheres, os precários, os desempregados, a comunidade lgbt, etc.), há movimentos que se inserem em temáticas tão vastas como o ambiente, a paz ou a justiça fiscal em todo o mundo, e há movimentos que surgem para combater medidas específicas (o aumento de propinas, por exemplo) ou promover outras (como a legalização do aborto ou o casamento de pessoas do mesmo sexo). Mas também são movimentos sociais as associações de moradores, as comissões de pais, as sociedades de intervenção social e cultural. Todas são formas de garantir que a democracia existe e funciona.

Neste momento, o impacto crescente dos movimentos sociais faz-me sentir a necessidade de realçar três aspetos que me parecem relevantes, sobretudo pelo que têm de perigoso:

 
1. Os movimentos sociais não são movimentos de protesto. Há movimentos que surgem apenas para protestar, há movimentos de cuja ação faz parte o protesto, e também há movimentos cuja importância não advém da capacidade de organizar e estar presentes em protestos. Se os protestos estão na ordem do dia, ainda bem — é sinal de que afinal não somos mansos. Mas a democracia precisa de movimentos sociais fortes em todos os momentos, incluindo os de menor visibilidade.

2. Os movimentos sociais não são alternativa a partidos e sindicatos. Todos correspondem a culturas políticas diferentes, com âmbitos e modelos de organização diferentes (não há movimentos nem protestos organizados e desorganizados — há maneiras diferentes de os organizar). Mas todos são absolutamente fundamentais em qualquer democracia. Movimentos, partidos e sindicatos complementam-se e interagem, de muitas formas diferentes. No entanto, o que passa para a perceção popular são os eventuais antagonismos, e a melhor maneira de demonstrarmos que é uma perceção falsa e perigosa é reconhecer que a responsabilidade é também de todos os intervenientes, incluindo movimentos, partidos e sindicatos. Se a incompreensão mútua às vezes existe de facto, e tem bases históricas, a verdade é que todos temos experiência da capacidade que temos para trabalhar em conjunto, precisamente porque acreditamos que nos complementamos nos nossos modos de agir.

3. Os movimentos são, por definição, e isso nem se discute, políticos. Há movimentos sociais que são antipartidários e/ou antissindicais, mas não o são por serem movimentos sociais, mas porque são características das suas agendas. E é uma agenda de que eu discordo profundamente, mas é legítima, precisamente porque vivemos em democracia. Porém, o caráter apartidário dos movimentos é muito mobilizador nestes dias, trazendo inclusivamente para a arena gente que nunca participou em nada. Mas apartidarismo não pode ser confundido com antipartidarismo ou antissindicalismo. Até porque a crítica indiferenciada dos agentes políticos enfraquece a democracia e alimenta uma cultura antipolítica que abre espaço a populismos de toda a espécie, nomeadamente de extrema direita.

Sejamos claros, mais uma vez: a minha geração é a primeira da história recente a viver pior do que a anterior em muitos aspetos. Os nossos vínculos laborais são cada vez mais precários, e é quando existe sequer situação laboral para adjetivar; o acesso às coisas que demos por garantidas, como a saúde e uma educação de qualidade, está a ser-nos negado, a nós e aos nossos filhos. A ideia de que o futuro vai ser melhor desapareceu por completo. Mas recuso em absoluto que me digam que a minha geração vive pior do que dos meus pais — precisamente porque a minha geração viveu sempre em liberdade e em democracia.

O que me preocupa mais é que a geração dos nossos filhos tem tudo para viver muito pior do que a nossa, e em todos os aspetos, e não apenas materiais. O modelo neoliberal que nos está a ser imposto (também por um grupo de pessoas que se uniu para implementar a sua ideologia a nível internacional) traz consigo, porque caso contrário nunca poderá ser implementado em pleno, a destruição lenta dos mecanismos da democracia. Mas cabe-nos a nós, agora, sermos o grupo de pessoas que se une para lutar por valores e rejeitar a inevitabilidade desta ideia tremenda: a de que o futuro passa pela destruição de tudo aquilo que nos permite viver uma vida digna. E ainda bem que o podemos fazer em democracia.

Porque vivemos dias extraordinariamente perigosos e somos alvo de uma política violentíssima, temos, pegando no texto do 15 de setembro, de fazer algo de extraordinário. Já o fizemos, todos, quando saímos à rua em setembro, estamos a fazê-lo aqui, ao criar pontes fundamentais de unidade, mas temos de o continuar a fazer.

Se é claro para mim que ninguém fala em nome de um milhão de pessoas que saiu à rua a 15 de setembro, mais claro é que elas saíram à rua em resposta a um apelo que era muito claro: o da recusa das políticas da troika, dos troikistas, da austeridade e do memorando. Uma convocatória que se chama "Que se Lixe a Troika! Queremos as nossas Vidas!" não tem nada de ambíguo no conteúdo e no registo, e foi a esse apelo que as pessoas responderam quando saíram à rua a 15 de setembro.

O texto do 15 de setembro não aponta alternativas. Porque entre nós elas são diversas, e porque o momento de protestar na rua não é necessariamente o momento de apresentar alternativas. Mas elas têm de ser apresentadas, ou protestos como o 15 de setembro são momentos de indignação que não conseguem transformar-se em momentos de mudança. É importante que estas alternativas sejam concretas, claras e incisivas, e que possam ser discutidas também fora de salas como esta, de congressos e debates académicos — mas sem que sejam reduzidas a slogans fáceis e populistas ou a promessas irrealistas. Se o desafio do protesto é crescer para ser alternativa, o das propostas que fizemos aqui hoje é passarem a ser vistas como alternativas por todas as pessoas que não estão aqui. Porque a força das nossas convicções não lhes confere legitimidade democrática.

E, para isso, vamos ter de levar as nossas alternativas para a rua, e também continuar a protestar. Com gente que terá outras alternativas, outras culturas políticas, outras visões do mundo. E de maneiras muito diferentes. Por exemplo, já no dia 13, vai haver, na Praça de Espanha, uma manifestação com a cultura (música e não só), que resulta da iniciativa de algumas pessoas que estiveram ligadas ao 15 de setembro e de vários profissionais da cultura, que também não querem deixar de dizer "Que se Lixe a Troika!"

Porque o momento é urgente, temos, mais do que nunca, de saber fazer três coisas:

1. Convergir sem competir.
2. Não confundir unidade com unanimidade, e entender que não há democracia sem escolhas, nem escolhas sem diferença.
3. Celebrar a nossa diversidade como complementaridade, sobretudo quando ela implica a capacidade de mobilizarmos mais pessoas para a luta comum.

O que está em causa já não é, há muito tempo, um futuro melhor para os nossos filhos; é um presente que possamos, todos, viver, aqui. E se isto parece uma utopia para muitos de nós, eu quero fazer tudo para que seja um dado adquirido para a geração da minha filha. E isso só depende de nós.»
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2 comments:

menvp disse...

Os políticos TÊM DE PASSAR A SER MAIS CONTROLADOS!
[os políticos, e os partidos políticos, vão ter que se aguentar]
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-> Nacionalização de negócios 'maddofianos', privatização de empresas estratégicas (e que dão lucro!) para a soberania, PPP's, etc... SALTA À VISTA que os políticos têm de passar a ser muito controlados por quem paga (vulgo contribuinte)!
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Uma sugestão: Islândia - a revolução censurada pelos Media, mas vitoriosa!
Resumo (tudo pacificamente):
- Renegociação/reestruturação da dívida;
- Referendo, de modo a que o povo se pronuncie sobre as decisões económicas fundamentais;
[uma outra sugestão: blog «fim-da-cidadania-infantil» - Direito ao veto de quem paga, vulgo contribuinte]
- Prisão de responsáveis pela crise;
- Reescrita da Constituição pelos cidadãos.
{Obs: consultar o know-how islandês poderá ser muito útil}

voz a 0 db disse...

Olá Joana...

Pergunta a Mariana:
"O que é que se faz depois de uma revolução? O que é que se pode fazer que se compare a uma revolução?"

Resposta simples: Uma Revolução.

Tenho a ligeira sensação que o tal milhão que saiu à rua, e a maioria dos restantes 9 milhões, ainda não se deu conta de que isto já não não se altera sem outra Revolução...
Se ainda pensam que os títeres vão abdicar do poder que têm, ou se pensam que eles têm coragem para fazer o que deve ser feito, e falo apenas e só na questão da Soberania Financeira e Política (infelizmente é esta a Ordem na Civilização actual), então podem continuar a sair à rua quantas vezes quiserem, podem continuar a dar abraços aos ESCRAVOS DAS FARDAS, e beijos, enquanto eles deixarem, que nada de FUNDAMENTAL se vai alterar... Apenas e só porque vendemos há uns anos a esta parte a nossa Soberania e só agora estamos a começar a pagar o preço...

Fico por aqui!
Abraço