Tudo quando seja dito ou escrito sobre a escandalosa tributação das pensões, que se perfila no horizonte, pecará sempre por defeito. Em mais um artigo de opinião, no Público de hoje (sem link), António Bagão Félix regressa ao tema, pedagógica e clarissimamente.
Adensa-se o nevoeiro sobre o sistema público de pensões. A incomodidade relativa à inconstitucionalidade da “contribuição extraordinária de solidariedade” [CES] é por de mais evidente e gera, por demagogia ou ignorância, declarações infelizes e erradas. O sr. secretário de Estado da Administração Pública publicou a este propósito um texto. É curioso que tenha sido ele a fazê-lo e não o responsável pelos impostos ou orçamento (afinal, trata-se de um imposto) ou pela Segurança Social (afinal, abrange todas as pensões).
Diz-se preocupado com a sustentabilidade das pensões. Ainda bem. Só não entendo como esta medida “extraordinária” criada para ajudar a que se atinja o défice previsto no programa de ajustamento possa contribuir para resolver o invocado problema de longo prazo e estrutural da Segurança Social. Se assim fosse, a sua receita deveria ser encaminhada para o Fundo de Estabilização da Segurança Social e não ser consumida no próprio exercício sem qualquer afectação à referida finalidade.
Não nos esqueçamos que o Regime Previdencial da S. Social, além de constitucionalmente autónomo, até é superavitário (mais receita da TSU do que as pensões e outras prestações de base contributiva)! E tem sido este regime a esbater o défice do Estado e não o inverso como, incrivelmente, se tem querido passar para a opinião pública.
Fiquei também perplexo por ler um texto que evidencia desconhecimento da história e da essência do Seguro Social, e que é um certificado de desconfiança nos sistemas públicos de protecção social. Implicitamente diz-se que o actual regime contributivo de repartição é, na prática, quase não-contributivo e a todo o tempo sujeito à discricionariedade das decisões políticas, porque não assenta num sistema de capitalização. Uma contradição na argumentação, pois que são também sujeitas à CES as pensões complementares fundeadas precisamente por via do tal regime de… capitalização.
Diz que só abrange cerca de 8% dos pensionistas, aposentados e reformados (número algo subestimado). Pobre argumento: de facto, assim é por uma má razão: é que as pensões são, em regra, muito baixas e de curta base de descontos… Mas a questão da constitucionalidade não é uma simples questão de aritmética de quem é atingido. Como se a constitucionalidade aumentasse à medida que os atingidos diminuíssem…
Como os salários no Estado já haviam sido cortados a partir de 1500 €, diz que no caso dos aposentados a CES se aplica a partir de 1350 € para compensar o efeito de estes já não pagarem TSU. Esqueceu-se de que a CES se aplica a todos os reformados (e não apenas aos da CGA) e também aqui o Governo encara a TSU como um imposto e não como uma contribuição sinalagmática entre um esforço contributivo e benefícios em função desse esforço.
O texto em nada contraria a inconstitucionalidade (e injustiça) da medida e, ao caracterizar a CES como um verdadeiro adicional fiscal, até acentua a violação do preceito constitucional de que o imposto sobre o rendimento pessoal tem que ser único. Diz ainda que “a CES não incidirá, ao contrário do que chegou a ser dito, sobre as prestações no âmbito do chamado 3.º pilar […] e sobre a componente do reembolso de capital no âmbito de regimes profissionais complementares (2.º pilar) na parte relativa às contribuições do beneficiário”. Não é “ao contrário do que chegou a ser dito” (por quem?), mas sim ao contrário do que estava escrito na proposta inicial da lei do Orçamento apresentada pelo Governo…
Tal intenção ab initio do Governo de tributar tudo em redor de pensões ou rendas vitalícias fica, aliás, evidenciada a pág. 47 do Relatório do OE/2013, ao considerar a CES do lado da “redução da despesa”(!) e não do lado do “aumento da receita”. Tudo demasiado estranho para esconder uma evidência de inconstitucionalidade.
Ouvi também algumas declarações do sr. primeiro-ministro no passado domingo. ibrantemente aplaudido num congresso de jovens. Pena que não as tivesse feito numa sessão com os tais “pensionistas ricos” de que falou.
Tenho estima e consideração pelo primeiro-ministro, mas lamento ter que reconhecer que as suas declarações foram infelizes e abusivas. Procurou confundir, em vez de debater. Juntou tudo numa espécie de caldeirada para que a mistura o desobrigue de explicar o inexplicável.
Falou como se os reformados com longas carreiras contributivas fossem os culpados pelas regras determinadas, ao longo do tempo, pelos Governos. Subliminarmente fala de pensões “milionárias” (leia-se: acima de 1350 €) e desmerecidas como se quase se tratasse de um “roubo” aos actuais trabalhadores activos. Propositadamente ou não, misturou pensões arduamente conquistadas por muitos e completos descontos, com pensões de reduzida base contributiva e pensões de nulo ou reduzido esforço com que empresas do Estado presentearam alguns quadros e gestores. Refere direitos sociais (bem) adquiridos como coisa de somenos, mas esquece os deveres adquiridos pelo Estado Social e não tem a mesma determinação com os direitos (mal) adquiridos em PPP e outras prebendas.
Apoio a progressividade do imposto sobre o rendimento. Agora o que é de todo impensável é que essa progressividade castigue mais os pensionistas do que os activos ou qualquer forma de rendimentos de capitais ou outros.
Ao mesmo tempo, o Governo repete ad nauseam que a CES se destina a aumentar as pensões mínimas. Há aqui um equívoco: estas pensões (do regime geral da Segurança social) não são total e indiferenciadamente pensões de pobres. Há uma percentagem significativa que aufere esse valor por razões de exiguidade de descontos na altura em que alguns regimes da Segurança Social davam os primeiros passos. Ora, havendo agora um instrumento de aferição social de carência desses pensionistas (complemento solidário para idosos), os aumentos, neste tempo de fortes restrições orçamentais, deveriam beneficiar preferencialmente (e mais) estes e não todos por igual, para preservar o princípio da equidade.
Em suma: não é assim que se inicia, com elevação, o debate, que é bem-vindo, sobre o futuro do estado Social. Aliás nem sequer sei se pensionistas e reformados o podem debater, porque agora é criticado quem defende as suas ideias sendo "parte interessada" no assunto, como ainda há dias vi um articulista referir no PÚBLICO. Será que não se pode debater o IVA por se ser consumidor, ou o subsídio de desemprego por não se ter trabalho, ou o abono de família por se ser pai ou mãe, ou o IRS por se ser trabalhador? No que a mim diz respeito, não estou a receber qualquer pensão da Segurança Social, Caixa Geral de Aposentações, Banco de Portugal ou qualquer outra empresa do sector público e já vou no 43ºano de descontos (quase 600 meses) pagos sem interrupção e pela totalidade dos meus salários. Falo por convicção e conhecimento.
Ainda que subliminarmente e por meias-palavras, está-se a induzir uma certa ideia de fragmentação geracional e um ajuste de contas com os mais velhos. Este "filme" vai continuar na apresentação da "factura etária" incluída no tal corte dos 4 mil milhões de euros que aí vem...
Apesar de ser de longe o sector do Estado que mais se reformou nas últimas duas décadas, a Segurança Social de base contributiva caminha inexoravelmente para a destruição, engolida por um todo-poderoso Ministério das Finanças que tudo leva na enxurrada. Espero que o actual ministro – pessoa que muito prezo – tenha condições para lutar contra esta deriva e não venha a ser o certificador do óbito do Seguro Social, como pilar fundamental, ainda que não único, de protecção social.
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