5.2.13

As mulheres e as calças


(Clicar na inagem para ler.)

Os jornais noticiaram ontem que «as parisienses já podem usar calças», por ter deixado de se aplicar uma proibição expressa numa lei do início do século XIX, mais tarde regulamentada por circulares em que eram admitidas duas excepções: andar a cavalo ou de bicicleta. O ministério dos Direitos da Mulher francês veio agora declarar que esta norma «é hoje incompatível com os princípios de igualdade entre as mulheres e os homens, que se encontram na Constituição». Tudo leva a crer que sim... 

Esta notícia fez-me recuar umas décadas e retomar uma história que já contei em tempos. 

Num recorte do Diário Popular de 1969, lê-se que, nesse ano, as lojas passaram a vender um número absolutamente inusitado de calças a mulheres de todas as idades. Mas o que me interessa é a fotografia e respectiva legenda: «As alunas da Faculdade de Letras já ganharam a sua batalha». Não é dito qual era a batalha nem qual foi a vitória, talvez porque um lápis azul da censura tenha cortado a explicação ou porque esta foi evitada para escapar ao referido lápis. Mas eu explico.

Dava então aulas em Filosofia, na dita Faculdade de Letras de Lisboa, e a prática corrente quanto a indumentária feminina era a seguinte: só às estrangeiras era permitido usar calças e a triagem era feita pela Sr.ª Clotilde. Várias gerações se lembrarão dessa zelosa empregada, sempre presente pelos corredores, movendo-se lentamente dentro de uma bata preta acetinada. Quando avistava pernas femininas revestidas «à homem», aproximava- se e perguntava em voz muito baixa: «A menina é estrangeira?». Ausência de compreensão, e portanto de resposta, era interpretada como afirmativa e a autorização era tácita. Mas tinha ordens para pedir às portuguesas que abandonassem as instalações da Faculdade.

Uma parte desse ano de 69 foi academicamente animadíssima na Cidade Universitária, como o foi em nalgumas outras faculdades de Lisboa e, sobretudo, em Coimbra. A páginas tantas foi decretada uma greve e, enquanto ela durou, é óbvio que a Sr.ª Clotilde se recolheu atrás de uma secretária, num corredor longe do átrio, e que toda a gente fez assembleias por todos os cantos, com calças, saias e mini-saias. Não me lembro se os objectivos pela qual a greve foi convocada terão sido minimamente atingidos, mas ela teve, garantidamente, um benefício colateral: as calças entraram em Letras para sempre e ficaram como direito feminino adquirido. Ou seja, foi ganha a tal batalha que a fotografia do Diário Popular refere sem explicar.
.

3 comments:

Blondewithaphd disse...

Por acaso não sou grande apreciadora... de calças:)

Helena Araújo disse...

Acabei de me dar conta de como a minha mãe era "prafrentex" - por essa altura já ela usava frequentemente calças (lembro-me de uma gravidez em 1970 em que a sua roupa de grávida eram calças) e ainda antes de 69 trouxe-me de Paris um fato lindíssimo de calças e casaco comprido. Para mim (nascida em 63), usar calças era a coisa mais natural do mundo, e achava muito estranho que a mãe de uma amiga minha, aí por volta de 1980, a obrigasse a andar sempre de saias. Só agora me dou conta que isso era o normal uma década antes.

(E agora percebo também o comentário de um padre que teve bastante contacto com os meus pais na altura em que eu nasci. Dizia ele que a minha mãe era "leviana". Acredito que sim: ia à missa sem véu na cabeça, ia com as amigas para os cafés - e usava calças! Parece impossível, uma mãe da família...)

Joana Lopes disse...

Helena,
Na IBM, o mais «prafrentex», como empresa, que se possa imaginar num Portugal cinzentíssimo, em fim de 1970 as calças ainda eram muito mal vistas: se fosse um «caça e casaco» ainda ia... Mas tudo mudou radicalemnet muito depressa.