Está online no Económico, mas quero que este texto de José Reis Santos fique aqui na íntegra.
Quando as 00.20 da madrugada de 25 de Abril de 1974 a Rádio Renascença tocou Grândola Vila Morena, poucos eram os que sabiam que se cantava a última missa de um regime defunto.
Essa foi a madrugada que todo um Povo esperava, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, e livres habitamos a substância do tempo, como celebrizou Sophia. A madrugada de todas as esperanças, de todos os sonhos e utopias. A madrugada onde o Povo finalmente voltava a mais ordenar, dentro das suas cidades, reconhecendo em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade. Portugal virou, nessa madrugada, terra da Fraternidade, como o desejava Zeca, terra da Liberdade, como o desejávamos todos.
No espaço de uma geração dotámos o País de um sistema político adequado às exigências formais dos regimes democráticos do século passado. Retirámos um povo da obscuridade forçada do analfabetismo e da rígida estratificação social, construímos as mais qualificadas gerações da nossa História, e incutimos a ideia que consagraríamos uma cultura de mérito adequada às exigências da nossa contemporaneidade. Empoderármos as nossas mulheres e demos os direitos das maiorias às minorias, finalmente adicionando a "Igualdade" à "Liberdade" e à "Fraternidade". Sonhámos com um Portugal arco-íris, politicamente moderno e económico e socialmente progressista, depois de 48 anos medievalistas, pintados a tons de negro e cinza escuro.
Acreditávamos que o futuro nos traria mais igualdade, mais equidade e mais justiça social. Por isso fomos admitindo os erros do presente, a deterioração do sistema político-partidário, a consagração do "amiguismo" e da cunha, o regresso desbocado das elites oligárquicas e egocêntricas. Fomos assim andando, até que nos retiraram o ganha-pão e a dignidade. Até que a esperança se transformou num bilhete de avião ou na crença que sobreviveremos a um coma insalubre induzido por fanáticos de terapias dementes.
Deixámos então de acreditar na capacidade dos nossos titulares institucionais. Mentem, não actuam, não se opõem. Não chega que nos peçam para cegamente confiarmos nas urnas, quando elas regularmente elegem conjuntos de medíocres. "Democracia" não é, nem pode ser, uma desculpa institucional para nos convencer que o valor legitimador do Povo se esgota num papel mágico. A democracia vive-se todos os dias, em cada acto governativo, em cada objecção e contra-proposta da oposição, em cada manifestação e protesto da sociedade civil, organizada ou não. E por ser Grândola a bitola da nossa qualidade cívica, a sua essência, as missas não podem esperar quatro anos para serem cantadas.
Mas quando um governo mente e engana, quando a oposição é ineficaz ou indecisa, e quem no sistema pode reagir, não reage, que fazer? Promover a revolta ou a insurreição? Aceitar o coma? Esperar por 2015? Creio que é imperativo ter algumas cautelas, desligarmo-nos do coma induzido e demonstrar, cantando de pulmão cheio ao supremo magistrado da Nação, que o regular funcionamento das instituições está hoje em causa, que o regime se encontra em pré-falência institucional, que ele tem de intervir. Entretanto, a sociedade civil tem de continuar o seu requiem por Portugal, intervir criticamente e obrigar a uma regeneração do sistema político-partidário. Tem de sair à rua no dia 2 de Março, e transformar uma anunciada missa de finados numa ideia de futuro, ao som de Zeca Afonso.
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