Ainda não escrevi uma única linha sobre Chávez desde o anúncio da sua morte. Mas este texto de Boaventura Sousa Santos, editado hoje pelo Público (sem link) corresponde, quase na totalidade, àquilo que penso. Por isso aqui o deixo. (Os realces são meus).
Morreu o líder político democrático mais carismático das últimas décadas. Quando acontece em democracia, o carisma cria uma relação política entre governantes e governados particularmente mobilizadora, porque junta à legitimidade democrática uma identidade de pertença e uma partilha de objetivos que está muito para além da representação política. As classes populares, habituadas a serem golpeadas por um poder distante e opressor vivem momentos em que a distância entre representantes e representados quase se desvanece. Os opositores falarão de populismo e de autoritarismo, mas raramente convencem os eleitores. É que, em democracia, o carisma permite níveis de educação cívica democrática dificilmente atingíveis noutras condições. A difícil química entre carisma e democracia aprofunda ambos, sobretudo quando se traduz em medidas de redistribuição social da riqueza. O problema do carisma é que termina com o líder. Para continuar sem ele, a democracia precisa de ser reforçada por dois ingredientes cuja química é igualmente difícil, sobretudo num imediato período pós-carismático: a institucionalidade e a participação popular.
Ao gritar nas ruas de Caracas “Todos somos Chávez!”, o povo está consciente de que Chávez houve um só e que a revolução bolivariana vai ter inimigos internos e externos suficientemente fortes para pôr em causa a intensa vivência democrática que ele lhes proporcionou durante anos. Chávez aproveitou o boom dos recursos naturais (sobretudo petróleo) para realizar um programa sem precedentes de políticas sociais, sobretudo nas áreas da educação, saúde, habitação e infraestruturas que melhoraram substancialmente a vida da esmagadora maioria da população. Foi o artífice incansável da integração do subcontinente latino-americano. A sua solidariedade com Cuba é bem conhecida, mas foi igualmente decisiva com a Argentina, durante a crise da dívida soberana em 2001-2002, e com os pequenos países das Caraíbas. Nos períodos mais decisivos da sua governação (incluindo a sua resistência ao golpe de Estado de que foi vítima em 2002), Chávez confrontou-se com o mais agressivo unilateralismo dos EUA (George W. Bush), que teve o seu ponto mais destrutivo na invasão do Iraque. Chávez estava convencido que a América Latina seria o próximo alvo e única maneira de travar os EUA consistia alimentar o multilateralismo. Daí, a sua aproximação à Rússia, China e Irão. Sabia que os EUA (com o apoio da União Europeia) continuariam a “libertar” todos os países que pudessem contestar Israel ou ser uma ameaça para o acesso ao petróleo. Daí, a “libertação” da Líbia, seguida da Síria e, em futuro próximo, do Irão.
Chávez não conseguiu construir o socialismo do século XXI. Conforta-me saber que em várias ocasiões Chávez tenha referido com aprovação a minha definição de socialismo: “Socialismo é a democracia sem fim.” Causou a ira das multinacionais europeias e norte-americanas que se vingaram com uma campanha impressionante de demonização de Chávez que se foi tornando em senso comum ocidental sobre Chávez (exemplo deplorável são as reportagens de Márcia Rodrigues correspondente da RTP em Nova Iorque: além de ser tendenciosa e ignorante, põe em risco os interesses dos empresários portugueses na Venezuela). Desarticulou o capitalismo que existia, mas não o substituiu. Daí, as crises de abastecimento e de investimento, a inflação e a crescente dependência dos rendimentos do petróleo.
Os desafios são enormes. Chávez assentou o seu poder na adesão democrática das classes populares e na união política entre o poder civil e as forças armadas. Chávez conseguiu uma união de sentido progressista que deu estabilidade ao regime. Mas para isso teve de dar poder económico aos militares, o que, para além de poder ser uma fonte de corrupção, poderá amanhã virar-se contra a revolução bolivariana, ou, o que dá no mesmo, subverter o seu espírito transformador e democrático. Mesmo quando sufragado democraticamente, um regime político à medida de um líder carismático tende a ser problemático para os seus sucessores. Se a vertigem autoritária se instaurar, será o fim da revolução bolivariana. O PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela) é um agregado de várias tendências e a convivência entre elas tem sido difícil. Desaparecida a figura agregadora de Chávez, é preciso encontrar modos de expressar a diversidade interna. Se a corrupção não for controlada e se as diferenças forem reprimidas por declarações de que todos são chavistas e de que cada um é mais chavista do que o outro, estará aberto o caminho para os adversários da revolução.
O grande desafio das forças progressistas é saber distinguir entre o estilo polemizante de Chávez, certamente controverso, e o sentido político substantivo da sua governação, inequivocamente a favor dos pobres e de uma integração solidária do subcontinente. Chávez contribuiu decisivamente para consolidar a democracia no imaginário social. Consolidou-a onde ela é mais difícil de ser traída, no coração das classes populares. E onde também a traição é mais perigosa. Alguém imagina as classes populares da Europa verterem pela morte de um líder político democrático as lágrimas amargas com que os venezuelanos inundam as televisões do mundo?
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