A menina Etelvina morreu em 1975, à beira de completar 93 anos. Há muito que estava frágil, magérrima, muito calma e quase sempre calada. Até quase ao fim, numa cadeira baixinha, ao fundo do longo corredor da casa que já a tinha visto nascer, fazia metros e metros de renda para entremeios de lençóis, cortinas para vidraças, naperons de todos os tamanhos e feitios.
Mas de vez em quando acordava muito nervosa e contava umas histórias esquisitas: dizia ela que eram sonhos onde via o que ia acontecer daí a muito tempo. A família achava que devia ser dos nervos e até a levou ao Miguel da farmácia para ele lhe fabricar um velho calmante, com pó tirado de vários frasquinhos.
Numa manhã acordou aos gritos. Que ouviu um senhor dizer que os avós iam ter de ajudar os filhos desempregados e até os netos (mas então vai ficar tudo ao contrário?). Que iam fechar outra vez as fronteiras, ele disse que havia uma que não podia deixar passar e que isso tinha a ver com reformados (mas porquê?) Que esse senhor até era ministro mas não primeiro, tinham dito que era segundo ou terceiro (mas então, no futuro, vai haver segundos-ministros?). Que ele não queria um cisma grisalho (grisalha tinha ela sido e cisma não é coisa de igrejas?) E que era preciso vermo-nos livres de uma gente muito má que invadiu Portugal e a que chamou troika . E foi aí que ela teve muito medo e que acordou aos gritos.
Deram à menina Etelvina uma dose dupla do calmante da farmácia do Miguel e ela foi fazer renda na cadeira baixinha. Mas muito preocupada com o seu país.
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