Luís Reis Torgal escreveu, no Público de ontem, um excelente texto (sem link), com este título. Ainda pensei divulgar apenas uns excertos, mas aconselho a leitura na íntegra.
Ficam aqui o primeiro e os dois últimos parágrafos e o texto completo.
«O discurso proferido em 3 de Maio (dois dias depois do “Dia do Trabalhador”) pelo primeiro-ministro (ia a dizer “primeiro ministro da troika") lembrou-me as Conversas em Família de Marcello Caetano, da minha mocidade. Não é que Passos Coelho tenha a estatura cultural do sucessor de Salazar. Logicamente que lhe fica muito atrás. Por isso Marcello tentava – e fazia-o com mestria – encantar o povo com um raciocínio claro e uma forma coloquial, próprio de um excelente professor. Se me recordou as Conversas em Família (“Conversas sem Família”, como lhe chamo) é porque tentou, com o que chamamos uma “retórica de poder”, convencer os portugueses, a qualquer preço, de que não havia outra maneira de salvar Portugal do que o uso da sua receita, em prejuízo sobretudo dos funcionários públicos e pensionistas, e também de toda a economia e da generalidade da sociedade. E a maioria dos funcionários públicos e pensionistas lutaram mais pelo país, com o seu trabalho e a sua dedicação, do que o ministro durante a curta vida de gestor e a sua longa militância política na JSD e no PSD e, agora, no Governo. (...)
Que democracia é esta? É óbvio: estamos numa democracia política capitalista e neoliberal, autoritária, e de dependência. Cavaco Silva, Passos Coelho e seus amigos são bem o seu símbolo. Por isso, se há que construir outra democracia, há que lutar contra esta. Aqui e em todos os países da Europa, numa lógica de solidariedade, afinal própria daquela Europa que defendemos, a “Europa dos Cidadãos”.
Caso contrário, ainda nos cai em cima não “outro 25 de Abril” (como por aí dizem), mas “outro fascismo”, com outra forma. A “política” (como arte e não como cidadania) sempre soube usar o disfarce. E não nos esqueçamos que se está a celebrar, neste ano, meio século de O Príncipe de Maquiavel.»
Na íntegra:
Conversas sem família
«O discurso proferido em 3 de Maio (dois dias depois do “Dia do Trabalhador”) pelo primeiro-ministro (ia a dizer “primeiro ministro da troika") lembrou-me as Conversas em Família de Marcello Caetano, da minha mocidade. Não é que Passos Coelho tenha a estatura cultural do sucessor de Salazar. Logicamente que lhe fica muito atrás. Por isso Marcello tentava – e fazia-o com mestria – encantar o povo com um raciocínio claro e uma forma coloquial, próprio de um excelente professor. Se me recordou as Conversas em Família (“Conversas sem Família”, como lhe chamo) é porque tentou, com o que chamamos uma “retórica de poder”, convencer os portugueses, a qualquer preço, de que não havia outra maneira de salvar Portugal do que o uso da sua receita, em prejuízo sobretudo dos funcionários públicos e pensionistas, e também de toda a economia e da generalidade da sociedade. E a maioria dos funcionários públicos e pensionistas lutaram mais pelo país, com o seu trabalho e a sua dedicação, do que o ministro durante a curta vida de gestor e a sua longa militância política na JSD e no PSD e, agora, no Governo.
Marcello tentava convencer – e convencer-se – de que não havia outra saída para o Estado Corporativo, lutando contra o comunismo e contra o Estado demoliberal, e que havia que manter a guerra colonial a todo o custo, pressionado na sua última fase de vida política pelos ultra-salazaristas, à frente dos quais estava o Presidente da República, Américo Tomás, e com a aceitação tácita do Ocidente europeu e americano. Não olhava o que se passava à sua volta, num país que, apesar dos seus “brandos costumes” (que nem sempre são brandos), já não acreditava em fórmulas do passado salazarista. E assim surgiu o 25 de Abril.
Passos Coelho tenta convencer – e convencer-se – de que luta ainda pelo país, que não o ouve e que dele discorda, emitindo discursos em que prega o despedimento, aumenta o número de horas de trabalho dos funcionários públicos e adia a idade da reforma, defende as taxas lançadas sobre os pensionistas, pensando mesmo acrescentá-las, através de processos ainda pouco claros, tão pouco claros e ilegítimos que o seu ministro Paulo Portas veio agora contrariá-lo. Segundo diz e dizem os seus companheiros desta triste jornada, fá-lo para manter o Estado social sustentado e os princípios da igualdade e da equidade, aproximando o “público” do “privado”, quando, numa lógica de Estado Social de Direito Democrático (não nos esqueçamos que Marcello Caetano usou também o termo “Estado social”, no seu caso Estado Social de Direito Corporativo e Autoritário, para substituir o desgastado conceito de Estado Novo), deveria ser sempre o “público” a orientar o privado, pois sabemos que este, acima de tudo, procura, legítima ou ilegitimamente, o lucro. Os exemplos dos bancos e das grandes empresas, como até de algumas pequenas e médias empresas, como algumas escolas particulares, e a sua política de emprego, aí estão para o provar. Ou seja, como seria de esperar, tendo em conta as suas posições empiricamente formadas, quase sem uma nesga de cultura política consolidada, Passos aí está a tentar justificar o Estado neoliberal e de austeridade, com argumentos injustificáveis, agora apoiado também por um Presidente da República que sempre alinhou por essa ideologia, quando ela tinha a face de desenvolvimento e de consumismo, e que regressa das cinzas com o seu ar distante (distante do mundo e do país que devia representar), mas com a eficácia de um quase membro do executivo.
Já nada me admira neste mundo. Salazar dizia que tudo fazia pela Nação, que não estava agarrado ao Governo (onde esteve 40 anos) e que… havia sempre um comboio para Coimbra ou para Santa Comba, para voltar a ser professor ou regressar à sua terra natal. Neste tempo, também se diz que tudo é feito por Portugal, mas já nem se fala do tal comboio, num tempo em que ele foi substituído pelo automóvel particular ou do Estado.
Não me admira que Passos Coelho não o diga e que se mantenha agarrado ao poder. Ele está, como outros no passado recente e outros no presente, a construir a sua carreira na Europa, ou mesmo no mundo, e não em Portugal. Mas, francamente, admira-me que alguns ministros não o façam, sem dúvida sérios e cultos, com as suas profissões construídas, os quais, todavia, preferem sacrificar a sua vida de cidadãos livres, mantendo uma política de sacrifício dos seus ideais, por exemplo no domínio da saúde e da assistência social ou da educação e da cultura. Em troca de quê? Francamente, gostaria de saber. Entretanto, vamos ouvindo estas novas Conversas em Família ou “Conversas sem Família”, agora através de entediantes discursos de quem pouco sabe mais do que política neoliberal, agora de austeridade, novas conversas que vão alimentando ou revoltando este país. O Portugal dos três FFF está outra vez reconhecível: Futebol (que faz esquecer a austeridade), Fado (agora convertido em “património” e, felizmente, já com outro tom do que o simples “fado português”, com “destino marcado na palma da mão”), e Fátima (de vez em quando, para recordar que este povo sofredor pode ter algum apoio do além) e, agora, de um T, de Televisão (para entreter o Zé Povinho, com telenovelas, futebol, discursos e comentários políticos e outras formas de adormecer).
Gostaria de, finalmente, aclarar o meu sentimento crítico, com uma nota importante. Ao estabelecer uma comparação de aspectos desta democracia com o marcelismo salazarista, não estou a dizer – eu que sou historiador, embora fale aqui sobretudo na qualidade de cidadão – que o Estado hoje se compara com o “fascismo à portuguesa”. De modo algum. O que não receio dizer é que há muitas formas de democracia. A que procura conjugar democracia política e democracia social, mas também a mera democracia política com que o capitalismo sempre viveu e alimentou, que prega a liberdade económica e a excelência do “privado”. Também há democracias com soberania e democracias dependentes de comunidades internacionais, como desta “Europa”, que, para mim, eurocrítico desde a primeira hora e defensor de uma Europa Cultural, sempre rebati, devido ao seu pecado original burocrático e economicista. E há também democracias políticas de maioria absoluta, que – como se tem provado – facilmente, em Portugal, se transformam em democracias autoritárias e anti-sociais.
Que democracia é esta? É óbvio: estamos numa democracia política capitalista e neoliberal, autoritária, e de dependência. Cavaco Silva, Passos Coelho e seus amigos são bem o seu símbolo. Por isso, se há que construir outra democracia, há que lutar contra esta. Aqui e em todos os países da Europa, numa lógica de solidariedade, afinal própria daquela Europa que defendemos, a “Europa dos Cidadãos”.
Caso contrário, ainda nos cai em cima não “outro 25 de Abril” (como por aí dizem), mas “outro fascismo”, com outra forma. A “política” (como arte e não como cidadania) sempre soube usar o disfarce. E não nos esqueçamos que se está a celebrar, neste ano, meio século de O Príncipe de Maquiavel.»
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1 comments:
Comemora-se não o meio século, mas o meio milénio da publicação de «O Príncipe» de Maquiavel. Só por curiosidade e coincidência, Maquiavel nasceu num dia 3 de Maio
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