24.5.13

Miguel Sousa Tavares, para além do sound bite do dia



A propósito do seu novo livro – Madrugada Suja –, Miguel Sousa Tavares dá hoje uma longa entrevista ao Jornal de Negócios (sem link). Os órgãos de comunicação social fazem-se eco de um sound bite bombástico, a propósito de Cavaco Silva e Beppe Grillo, mas há bem mais no texto.

Fala muito dos pais, sobretudo do pai, Francisco Sousa Tavares, de quem terá herdado a independência pela qual paga hoje muitas vezes. «Nunca conheci ninguém com a coragem dele. Nem sequer tinha medo da doença. Chegou a estar internado duas vezes nos cuidados intensivos, e fugiu dos cuidados intensivos! Uma vez fugiu de noite, com aquelas batas ridículas, com o soro dependurado. Telefonaram-me do Santa Maria a dizer: “O seu pai fugiu”. Pensando nisso: não sei se seria a mais corajosa das pessoas. Acho que a coragem consiste em ter medo e ultrapassá-lo. Quando não tem medo... (...) Acho que muitas vezes não tinha medo porque não tinha noção do perigo. Ao volante, era um terror. Também não tinha medo dos desastres e teve imensos desastres, a vida toda. Outras vezes achava que o perigo não era razão para o conter. Vi-o fazer coisas extraordinárias... A interromper o sermão de um padre, aos gritos, numa igreja, no tempo da outra senhora. O padre estava a fazer a apologia de Salazar. Mandou um berro: “Se quer fazer política, vá para a Assembleia Nacional”.»
E era assim mesmo, o FST – Tareco para os amigos– , que conheci bem e que se tornou um dos ícones do 25 de Abril quando, impecavelmente vestido no seu fato verde água, pegou num megafone, em pleno Largo do Carmo, e acalmou as massas a pedido dos capitães.

Sobre o país, verdadeiro protagonista do livro, MST cita de novo o pai: «os países não progridem sem elite e que a elite portuguesa morreu toda em Alcácer-Quibir». E acrescenta: « Já tivemos grandes políticos. Basta olhar para a composição do Parlamento há 30 anos. Se havia uma elite política, estava ali. Este constante bota-abaixo em relação à classe política, a eterna desconfiança (“são todos uns ladrões, uns bandidos, bem pagos de mais” – é mentira) faz com que as pessoas de valor se tenham afastado. Por isso estamos hoje reduzidos aos Passos Coelhos e aos Antónios Josés Seguros. Que são o grau zero da política. São aqueles que, não tendo nenhuma outra vida fora da política, fazem política.»

E acrescenta a tal frase que hoje corre nos escaparates: «Já não temos idade para brincar ao generais. O pior que nos pode acontecer é um Beppe Grillo, um Sidónio Pais. Mas não por via militar. Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva. Muito pior do que isso, é difícil.»

Totalmente pessimista? Talvez não. E ilustra-o com um diálogo que envolve um texano que vai visitar um amigo na Escócia: «“Qual é o segredo da tua relva?” “Semeio, fertilizo o terreno e rego muito.” “Também faço isso e a minha relva não é igual à tua.” “Calma. Depois espera 500 anos.” O problema é que ainda só temos 40 anos de democracia.»

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4 comments:

Helena Araújo disse...

Um apontamento à margem: essa história do "só temos 40 anos de Democracia" já começa a cansar. Compare-se a Democracia portuguesa hoje e a alemã em 1985. Note-se ainda que a alemã vinha de uma ditadura terrível, que tinha destruído a diversidade e decapitado as elites.
Compare-se a Democracia portuguesa hoje e a dos Estados da RDA, que só há 23 anos se viram livres da ditadura.
Aos 40 anos, a Democracia já não é uma criança, nem um adolescente.

Joana Lopes disse...

Percebo isso muito bem, Helena, e não sei comparar, por exemplo, com o caso da RDA.

Mas há algo que sei: estes 40 anos, em muitos aspectos, não apagaram os outros 40 de mentalidades salazarentas. Porquê? É um facto.

Helena Araújo disse...

Também não estou em condições de fazer uma análise muito profunda, mas os últimos 23 anos da RDA têm três diferenças enormes em relação aos últimos 40 portugueses:
1. Uma ditadura brutal caiu devido à coragem do povo, e não a um golpe militar. Em 1989 as pessoas iam para as ruas manifestar-se (diz que em Berlim Leste chegou a haver um milhão de pessoas na rua) apesar dos carros de soldados russos, e do medo muito concreto de levarem um tiro.
2. Era uma sociedade avançada, com alto nível de escolaridade, e com inúmeros grupos de debate que não queriam mais extremismo político, mas mais Democracia. Não é por acaso que Gauck, uma figura de proa nos movimentos que levaram à queda do muro e nas decisões sobre o destino a dar aos arquivos da Stasi, é hoje o presidente da República, muito estimado em todo o país.
3. O "Anschluss" implicou a adopção do grau de exigência democrático já existente no país vizinho.

Quanto a Portugal: às vezes penso que o problema são os "brandos costumes". Se se afirma que a ditadura não era bem uma ditadura, era apenas um regime paternalista que até nos salvou de muitos embates do séc.XX (e se se vota em Salazar para o melhor português de todos), não é preciso fazer tabula rasa e construir um sistema novo que se afirma contra o anterior - a tal discussão sobre "revolução ou evolução". Podemos perfeitamente ficar neste marasmo à espera de alguém que nos venha resolver os problemas - seja ele Salazar, seja ele D. Sebastião.

Há tempos a Helena Matos escreveu uma gracinha sobre a Esquerda que diz mal de tudo o que é do Estado Novo, e que um dia destes ainda vai criticar que as pessoas respirem porque isso também se fazia no Estado Novo. Não é uma gracinha, é uma artimanha para lavar o Estado Novo, para diluir factos gravíssimos num "ah, nem era assim tão mau". E passou. Ninguém reagiu.
Na Alemanha, uma frase destas tinha consequências. Como há alguns anos, quando uma locutora de televisão escreveu um livro a defender os valores da família tradicional, e caiu na asneira de dizer "Nem tudo o que fazia parte do III Reich era mau. Por exemplo, os valores de defesa da família..."
A televisão separou-se dela (quer dizer: despediu-a imediatamente) porque tamanha ignorância é incompatível com a imagem que a empresa quer dar. E houve um debate público onde se lembrou (mais uma vez) quais eram os famosos valores do III Reich quando protegia as famílias: é que as mães eram muito apreciadas no seu papel de produtoras de arianos.

Outro exemplo: a Alemanha tem pago indemnizações a judeus e a vítimas dos trabalhos forçados. Nem discute (enfim, admito que tentará baixar o valor da indemnização, mas não discute a culpa). 25 anos depois do fim da guerra, o Willy Brandt ajoelhou-se no gueto de Varsóvia.
E em Portugal: alguém já começou a pensar em devolver aos moçambicanos o ouro que lhes foi roubado naquele contrato sobre envio de trabalhadores para as minas da África do Sul?

Não é possível apagar mentalidades se não houver um corte muito consciente com esses valores, que implica um debate e um assumir de responsabilidades.

Joana Lopes disse...

Helena,

A chave está provavelmente aqui: na RDA, «uma ditadura brutal caiu devido à coragem do povo, e não a um golpe militar». Claro que o 25A não nasceu do nada mas sem o descontentamento profissional dos militares a história teria sido outra. E foi preciso esperar que uma cadeira apeasse Salazar.

Ou seja: claro que um dos grandes problemas dos portugueses são os brandos costumes – com fogachos que são a excepção. Veja-se o que se passa na actualidade...