A propósito do seu novo livro – Madrugada Suja –, Miguel Sousa Tavares dá hoje uma longa entrevista ao Jornal de Negócios (sem link). Os órgãos de comunicação social fazem-se eco de um sound bite bombástico, a propósito de Cavaco Silva e Beppe Grillo, mas há bem mais no texto.
Fala muito dos pais, sobretudo do pai, Francisco Sousa Tavares, de quem terá herdado a independência pela qual paga hoje muitas vezes. «Nunca conheci ninguém com a coragem dele. Nem sequer tinha medo da doença. Chegou a estar internado duas vezes nos cuidados intensivos, e fugiu dos cuidados intensivos! Uma vez fugiu de noite, com aquelas batas ridículas, com o soro dependurado. Telefonaram-me do Santa Maria a dizer: “O seu pai fugiu”. Pensando nisso: não sei se seria a mais corajosa das pessoas. Acho que a coragem consiste em ter medo e ultrapassá-lo. Quando não tem medo... (...) Acho que muitas vezes não tinha medo porque não tinha noção do perigo. Ao volante, era um terror. Também não tinha medo dos desastres e teve imensos desastres, a vida toda. Outras vezes achava que o perigo não era razão para o conter. Vi-o fazer coisas extraordinárias... A interromper o sermão de um padre, aos gritos, numa igreja, no tempo da outra senhora. O padre estava a fazer a apologia de Salazar. Mandou um berro: “Se quer fazer política, vá para a Assembleia Nacional”.»
E era assim mesmo, o FST – Tareco para os amigos– , que conheci bem e que se tornou um dos ícones do 25 de Abril quando, impecavelmente vestido no seu fato verde água, pegou num megafone, em pleno Largo do Carmo, e acalmou as massas a pedido dos capitães.
Sobre o país, verdadeiro protagonista do livro, MST cita de novo o pai: «os países não progridem sem elite e que a elite portuguesa morreu toda em Alcácer-Quibir». E acrescenta: « Já tivemos grandes políticos. Basta olhar para a composição do Parlamento há 30 anos. Se havia uma elite política, estava ali. Este constante bota-abaixo em relação à classe política, a eterna desconfiança (“são todos uns ladrões, uns bandidos, bem pagos de mais” – é mentira) faz com que as pessoas de valor se tenham afastado. Por isso estamos hoje reduzidos aos Passos Coelhos e aos Antónios Josés Seguros. Que são o grau zero da política. São aqueles que, não tendo nenhuma outra vida fora da política, fazem política.»
E acrescenta a tal frase que hoje corre nos escaparates: «Já não temos idade para brincar ao generais. O pior que nos pode acontecer é um Beppe Grillo, um Sidónio Pais. Mas não por via militar. Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva. Muito pior do que isso, é difícil.»
Totalmente pessimista? Talvez não. E ilustra-o com um diálogo que envolve um texano que vai visitar um amigo na Escócia: «“Qual é o segredo da tua relva?” “Semeio, fertilizo o terreno e rego muito.” “Também faço isso e a minha relva não é igual à tua.” “Calma. Depois espera 500 anos.” O problema é que ainda só temos 40 anos de democracia.»
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4 comments:
Um apontamento à margem: essa história do "só temos 40 anos de Democracia" já começa a cansar. Compare-se a Democracia portuguesa hoje e a alemã em 1985. Note-se ainda que a alemã vinha de uma ditadura terrível, que tinha destruído a diversidade e decapitado as elites.
Compare-se a Democracia portuguesa hoje e a dos Estados da RDA, que só há 23 anos se viram livres da ditadura.
Aos 40 anos, a Democracia já não é uma criança, nem um adolescente.
Percebo isso muito bem, Helena, e não sei comparar, por exemplo, com o caso da RDA.
Mas há algo que sei: estes 40 anos, em muitos aspectos, não apagaram os outros 40 de mentalidades salazarentas. Porquê? É um facto.
Também não estou em condições de fazer uma análise muito profunda, mas os últimos 23 anos da RDA têm três diferenças enormes em relação aos últimos 40 portugueses:
1. Uma ditadura brutal caiu devido à coragem do povo, e não a um golpe militar. Em 1989 as pessoas iam para as ruas manifestar-se (diz que em Berlim Leste chegou a haver um milhão de pessoas na rua) apesar dos carros de soldados russos, e do medo muito concreto de levarem um tiro.
2. Era uma sociedade avançada, com alto nível de escolaridade, e com inúmeros grupos de debate que não queriam mais extremismo político, mas mais Democracia. Não é por acaso que Gauck, uma figura de proa nos movimentos que levaram à queda do muro e nas decisões sobre o destino a dar aos arquivos da Stasi, é hoje o presidente da República, muito estimado em todo o país.
3. O "Anschluss" implicou a adopção do grau de exigência democrático já existente no país vizinho.
Quanto a Portugal: às vezes penso que o problema são os "brandos costumes". Se se afirma que a ditadura não era bem uma ditadura, era apenas um regime paternalista que até nos salvou de muitos embates do séc.XX (e se se vota em Salazar para o melhor português de todos), não é preciso fazer tabula rasa e construir um sistema novo que se afirma contra o anterior - a tal discussão sobre "revolução ou evolução". Podemos perfeitamente ficar neste marasmo à espera de alguém que nos venha resolver os problemas - seja ele Salazar, seja ele D. Sebastião.
Há tempos a Helena Matos escreveu uma gracinha sobre a Esquerda que diz mal de tudo o que é do Estado Novo, e que um dia destes ainda vai criticar que as pessoas respirem porque isso também se fazia no Estado Novo. Não é uma gracinha, é uma artimanha para lavar o Estado Novo, para diluir factos gravíssimos num "ah, nem era assim tão mau". E passou. Ninguém reagiu.
Na Alemanha, uma frase destas tinha consequências. Como há alguns anos, quando uma locutora de televisão escreveu um livro a defender os valores da família tradicional, e caiu na asneira de dizer "Nem tudo o que fazia parte do III Reich era mau. Por exemplo, os valores de defesa da família..."
A televisão separou-se dela (quer dizer: despediu-a imediatamente) porque tamanha ignorância é incompatível com a imagem que a empresa quer dar. E houve um debate público onde se lembrou (mais uma vez) quais eram os famosos valores do III Reich quando protegia as famílias: é que as mães eram muito apreciadas no seu papel de produtoras de arianos.
Outro exemplo: a Alemanha tem pago indemnizações a judeus e a vítimas dos trabalhos forçados. Nem discute (enfim, admito que tentará baixar o valor da indemnização, mas não discute a culpa). 25 anos depois do fim da guerra, o Willy Brandt ajoelhou-se no gueto de Varsóvia.
E em Portugal: alguém já começou a pensar em devolver aos moçambicanos o ouro que lhes foi roubado naquele contrato sobre envio de trabalhadores para as minas da África do Sul?
Não é possível apagar mentalidades se não houver um corte muito consciente com esses valores, que implica um debate e um assumir de responsabilidades.
Helena,
A chave está provavelmente aqui: na RDA, «uma ditadura brutal caiu devido à coragem do povo, e não a um golpe militar». Claro que o 25A não nasceu do nada mas sem o descontentamento profissional dos militares a história teria sido outra. E foi preciso esperar que uma cadeira apeasse Salazar.
Ou seja: claro que um dos grandes problemas dos portugueses são os brandos costumes – com fogachos que são a excepção. Veja-se o que se passa na actualidade...
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