Retomo, com algumas modificações, um post escrito há cerca de um ano.
No dia 31 de Março de 1974, quinze dias depois do golpe falhado das Caldas e três semanas antes do fim da ditadura, Marcelo Caetano fez a sua última aparição em público, num Sporting-Benfica que viria a ficar célebre não só, nem sobretudo, porque os visitantes venceram por 3-5.
Num texto publicado em 1978 (Depoimento), MC comenta: «Quando o alto-falante anunciou que eu me achava no camarote principal, a assistência calculada em 80.000 espectadores como que movida por uma mola oculta, levantou-se a tributar-me quente e demorada ovação que a TV transmitiu a todo o Pais. Isso foi interpretado como repúdio por aventuras militares.»
E é verdade – confirmo eu que lá estava. Se houve vaias, e parece que sim, não foram significativas quando comparadas com a ovação. À minha volta, só o grupo de amigos em que eu me integrava e, umas filas mais abaixo, Vasco Pulido Valente e Filomena Mónica, assistíamos, perplexos, ao entusiasmo generalizado.
Há 40 anos que arrasto uma pergunta que nunca terá resposta: quantas daquelas pessoas terão estado no Largo do Carmo na última quinta-feira de Abril e nas ruas de Lisboa do 1º de Maio que se seguiu? Um grande número, certamente. As multidões manifestam-se contra muitas coisas, mas gostam de vencedores – é bom não esquecer.
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5 comments:
« As multidões manifestam-se contra muitas coisas, mas gostam de vencedores – é bom não esquecer. »
Em 31 de Março de 1974, com a contestação à guerra colonial, com a emigração, com as greves, com as dificuldades em recrutar oficiais para o QP, com um 1º de Maio que se previa tumultuoso, com com uma vaga de prisões na forja pela PIDE, Marcelo era um vencedor ? Sim, quase foi em 25 de Abril, quando a inépcia ou a cumplicidade de um MFA(já) dividido permitiu que Marcelo ditasse que só se rendia a Spínola, que manobrou à vontade, embora "travado" e com o fiel da balança a mudar devido às multidões na rua, desobedecendo aos líderes militares na Pontinha, e que contribuíram para que durante largos meses não se ficasse por uma simples mudança das moscas. Quanto à firmeza das multidões eu poria uma outra questão ? Entre a multidão que ovacionou Marcelo no 31, haveria "arregimentados" pelos caciques, em Portugal inteiro, e transportados nas célebres "camionetas do regime?
Não me parece, de todo, que houvesse regimentos transportados para o efeito: o ambiente já não era esse no país e foi mesmo uma maioria esmagadora dos presentes que se levantou e aplaudiu. Mas acredito que o início da ovação não tenha sido espontânea, isso sim.
Espontânea ou não, a verdade é que Marcelo, em contagem decrescente, seguramente que aproveitaria a final no Jamor e transmitida pela RTP para "fabricar" o apoio popular que há muito perdera. Incluindo a da guarda pretoriana spinolista.
Marcelo era o homem das encenações e dos gestos teatrais, a partir de certa altura manietado pelo "faz que anda mas não anda”. Para além das "conversas em família" foi assim com a da Brigada do Reumático na Assembleia Nacional, ou com a votação na AN da moção sobre a "política ultramarina", de que eu falava nessa altura:
«Pois é, após uma semana muito agitada por parte das altas personalidades do regime o Marcelo fez um discurso exemplar nas suas contradições; para além disso, um tentar rebater as teses de Spínola, publicadas no seu livro “Portugal e o Futuro” – que ainda não chegou a Évora, aqui a 137 km de Lisboa. Um discurso estafado, que não engana quem dos mecanismos políticos e económicos conheça alguma coisita.
Recusado o impossível recurso a um referendo popular, restou ao Marcelo submeter-se, em gesto teatral, às decisões da Moção que os deputados Ultramarinos porão à votação amanhã. Alguns destes já foram intérpretes na Assembleia [Nacional] de correntes existentes no Ultramar tendentes à autonomia, estilo federativo (teses de Spínola) Mas, da Comissão do Ultramar, que redigiu o texto da moção atrás referida, fazem parte deputados anti-Spínola. Estou curioso de saber qual será o texto: Federação ou tudo como dantes?» (MCG – 1974.04.05]»
E numa colagem de recortes da minha correspondência na altura refiro o "arregimentar» que ainda em 1973 se verificava:
«30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contra -manifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa.). (MCG - 1973.07.19)
Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia-se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A Oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo [Caetano] bater-se-á contra nada. (MCG - 1973.10.25).»
3. - em tempo - politicamente e segundo a Constituição da altura, O Presidente do Conselho e o Governo dependiam politicamente do Presidente da República e não da Assembleia Nacional, cujo regimento aliás não previa a votação de moções de censura ou de confiança (no Governo).
E um jurista e legalista como Marcelo, encena na Assembleia Nacional ter o apoio dos Altos Comandos Militares - directamente dependentes do Presidente da República - e da Assembleia Nacional. Não é com a "prisão" do Presidente da República que o MFA se preocupa, mas "permite" que Marcelo exija render-se a um oficial-general - Spínola ou Costa Gomes, por acção de Feitor Pinto.
Há na altura um mistério: a conselho do Director Geral, da PIDE, que Spínola tentará manter em funções com a "benemérita" - Marcelo é aconselhado a refugiar-se sob protecção da GNR no Quartel General do Carmo - em vez de se dirigir para Monsanto, como seria previsto e fizera em 16 de Março. O Carmo não foi uma ratoeira, parece-me, mas uma tentativa de descolar Marcelo de Tomás, dando-lhe mão livre. Uns não queriam - o MFA - e outros não previram - a PIDE e Marcelo - com especial relevo para a juventude - o povo de Lisboa saísse à rua e cercasse o Quartel General da GNR e a sede nacional da PIDE - que as forças armadas - por ingenuidade de uns, por inépcia ou cumplicidade de outros - "deixaram" à vontade e com liberdade de movimentos.
Excelente nota, Joana! Desconhecia completamente esta história (nunca me interessei por futebol... :-) )!
Mas é claro que o regime tinha no mínimo muita gente que o tolerava, e com excepção da ovação à liberdade que foi o 1º de Maio de 74, as multidões que então andavam na rua eram muito especializadas!
A grande prova viu-se, para espanto de muitos, nas eleições de 1975!
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