Manuel Loff escreveu um importante texto no Público de ontem. Aqui fica, na íntegra:
O disparate das imagens/metáforas históricas do primeiro-ministro não cessa de me surpreender!
Há dias, Passos foi às Caldas da Rainha no dia em que passavam 40 anos sobre o 16 de Março de 1974, o fracassado golpe spinolista que procurava antecipar-se ao que viria a ser o 25 de Abril do Movimento dos Capitães. Não é difícil ter sérias dúvidas sobre se Passos Coelho saberá alguma coisa de minimamente sólido sobre o 16 de Março e o 25 de Abril, o contexto da crise final da ditadura, um país empurrado para o abismo pela opção da guerra colonial tomada por Salazar. O que é extraordinário é que este homem se atreva a invocar “a coragem dos militares que fizeram o 16 de Março e o 25 de Abril, num momento de grande incerteza e em que a História não estava ainda escrita, para realçar que também hoje se está perante um momento em que é necessário tomar decisões arriscadas”, como aquelas “medidas muito difíceis” que ele mesmo tomou “no quadro de ajuda financeira” (PÚBLICO, 17/3/2014).
É que só nos faltava mais esta! O homem a quem tocou dirigir o Governo no ano em que se comemoram 40 anos de democracia julga-se um Salgueiro Maia?, um decidido capitão que se revolta contra uma ditadura que prolongava, havia 13 anos, uma guerra ilegítima, sem apoio popular e sem saída militar? O problema não é só esta petulância de se comparar a si próprio com os capitães de Abril; é, acima de tudo, comparar o 25 de Abril e a libertação de um povo que, por vontade própria e, então sim, soberana, renunciava à guerra e, nas palavras de Costa Gomes na ONU, “não mais [admitia] trocar a liberdade de consciência coletiva por sonhos grandiosos de imperialismo estéril” com esta procura deliberada do regime de protetorado da troika que Passos nos apresenta como o dos “sacrifícios” para conseguir “a mudança estrutural” da economia portuguesa, como descreveu ele a Merkel.
Esta não é a primeira das alucinações de Passos entre o presente desastroso que ele próprio nos vem impondo e o passado recente da revolução de Abril e do fim da ditadura. Há um ano e tal, querendo prestar homenagem aos ex-combatentes da guerra colonial, enalteceu o esforço destes, não por terem suportado uma guerra injusta sobre a qual não tinham tido direito a pronunciar-se, mas porque haviam "servido a pátria de forma tão absoluta"; ora, como Portugal vive também hoje, segundo ele, "uma guerra intensa", "precisamos de encontrar em cada cidadão um soldado que esteja disposto a lutar pelo futuro do país" (Económico, com Lusa, 21/12/2012)! Se aceitarmos a metáfora – quase abjeta –, Passos não sai bem do paralelo que estabeleceu: a guerra que se vivia em 1974 fora declarada em 1961 por Salazar; a de hoje, foi declarada por Sócrates ao assinar o memorando da troika, mas apoiada e redobradamente assumida por Passos em 2011.
É um curioso sintoma este, o de uma direita política que, de tão embaraçada e intrinsecamente alheia ao 25 de Abril e à luta pela democracia em Portugal, não sabe o que há de dizer sobre a revolução. E que nem sequer aprende as lições revisionistas que a direita intelectual nos pretende há muito ensinar sobre o passado. Os programas oficiais de comemoração dos 40 anos da democracia são reveladores. Quando Cavaco lançou a ideia de uma pomposa conferência Portugal, Rotas de Abril: o Espírito da Democracia, a Cultura de Compromisso e os Desafios do Desenvolvimento, o historiador David Justino, da organização, propôs que se “usassem os princípios que a revolução trouxe para refletir para o futuro, em vez de se olhar em volta à procura de sinais no tempo de hoje idênticos ao do tempo de pré-revolução de 1974” (PÚBLICO, 6/12/2013). Justamente o que Passos Coelho não pára de fazer! Claro que o que incomoda o ex-ministro de Cavaco é a denúncia de um retorno ao passado, a evidências como uma emigração superior à dos piores anos do período 1961-74, um governo que apela, como o de Marcelo fazia, ao sacrifício nacional em nome de um projeto para Portugal que não submeteu a ratificação popular, dirigindo, num caso como noutro, um sistema político que perdeu o essencial da sua credibilidade...
Há vinte anos, o cavaquismo comemorou o 20.º aniversário do 25 de Abril tratando-o como se tivesse sido um golpe de uns quantos militares mandriões que abriram deliberadamente as portas ao totalitarismo, nada menos. Há dez, outro governo da direita, o de Durão, quis descafeinar a revolução negando o caráter revolucionário dos seus efeitos (“Abril é evolução”, lembram-se?). Agora, Cavaco só quer falar na “cultura de compromisso” (justamente o que, felizmente, o MFA não fez com a ditadura), a presidente da AR gostava de ver chaimites engalanadas par Joana Vasconcelos e patrocinadas pelo Pingo Doce, e o Governo aprovou no dia 11 (alguém se apercebeu?) um programa de comemorações que inclui uma coisa tão pertinente como um “call for design, dirigido a diversas categorias (print, motion, product e fashion)” a cargo de Guta Moura Guedes...
Dois dias depois do desaparecimento de Medeiros Ferreira, o historiador pioneiro na investigação sobre a Revolução dos Cravos, o melhor mesmo é fingir que nada disto está a acontecer...
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