23.4.16

O realismo e o défice mágico




«Quando escreveu "Cem Anos de Solidão", Gabriel García Márquez estabeleceu as traves-mestras do realismo mágico. A fantasia tornou-se algo comum e mistificava a realidade.

Portugal parece viver, neste momento, num labirinto típico de Jorge Luís Borges, onde realidade e ficção fazem parte do dia-a-dia. E temos cada vez mais dificuldades em separá-las.

Tomemos o exemplo que é o Programa de Estabilidade que o Conselho de Ministros terá aprovado e onde há a secreta esperança de conseguir que um dia o défice chegue a zero. Coisa impossível de realizar tendo em consideração a estrutura económica portuguesa e fazermos parte desse edifício de artifícios que é o euro. Bruxelas acha que isso será possível e por isso vai exigindo "reformas", salários mínimos baixos, reestruturações da banca e outras coisas que não resolvem o essencial: numa Europa com diferentes graus de desenvolvimento, uma moeda única estilhaça em vez de unificar. Na Europa todos falham o défice: mesmo aqueles que não sabem o que é o realismo mágico de García Márquez.

Estamos claramente no nível da ficção: o Governo faz uma redacção que possa agradar a Bruxelas, esta fará cara feia, depois exigirá mais reformas e planos B e, no fim, como no futebol, são capazes de ganhar os alemães.V No seu admirável livro "Payback" (agora editado em Portugal com o título "Desforra"), Margaret Atwood discorreu sobre o tema da dívida, o assunto que hoje em dia nos deixa arrepiados. E escreveu: "No Céu não há dívidas - estão todas pagas, de uma forma ou de outra -; no Inferno, porém, não há nada senão dívidas, e é cobrada uma enorme quantidade de pagamentos, embora nunca possa ser tudo pago. Tem de se pagar, pagar e continuar a pagar. Dessa forma, o Inferno é como um cartão de crédito infernal maximizado, que multiplica interminavelmente os encargos." (…) Viver da dívida é fácil. Criar riqueza é mais difícil. Viver com um cartão de crédito ilimitado é um desporto de quem tem posses.

O realismo mágico onde todos continuamos a caminhar, como se fosse possível agradar a gregos e a troianos (dentro do espírito da burocracia de Bruxelas), é um caminho cada vez mais estreito. Mesmo com Programas de Estabilidade, Planos Nacionais de Reformas e Reformas do Estado. Papéis que um dia ficarão molhados pela chuva. E ilegíveis.»

Fernando Sobral

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