19.7.16

É mesmo a isto que chamamos democracia?



«Um golpe de estado militar na Turquia. Um golpe falhado e esmagado, graças à oposição popular e a um iPhone com FaceTime. Mas, durante umas horas, a expectativa em todo o mundo, com prudentes declarações dos poderes políticos mundiais, que exprimem a sua “preocupação” e a absoluta necessidade de manter a “estabilidade” política na Turquia e que se abstêm de declarações de apoio a qualquer dos lados. (…) Durante umas horas, a ténue esperança de que este golpe de estado (cujos autores anunciam que querem “restaurar a ordem constitucional, os direitos humanos, as liberdades e o primado da lei”) possa restabelecer a abalada democracia e o estado de direito laico, de forma semelhante ao que aconteceu no 25 de Abril em Portugal.

Mas estas dúvidas duram apenas umas horas, porque o regime depressa abafa a rebelião, captura os revoltosos e passa à ofensiva, prendendo 6.000 militares e 1500 civis, suspendendo ou detendo 2750 juízes e procuradores. O golpe foi “uma oferenda de Deus” diz o próprio presidente Recep Tayyip Erdogan, que aponta as alterações que quer pôr em prática na sua “nova Turquia”: mais poderes presidenciais e menos poderes para as elites laicas, incluindo o sistema judicial. (…)

Mas será isto uma democracia? Este país que expulsa os jornalistas estrangeiros independentes e lança na cadeia os turcos que se atrevem a escrever sobre a corrupção do governo? Que pede anos de cadeia por “insulto ao presidente” para os que criticam a sua política? Que reprime pela força protestos e prende peticionários? Que quer restaurar a pena de morte para condenar os autores deste golpe? Este país que é o número 151 (entre 180) do ranking da liberdade de imprensa? (…)

As perguntas não têm sentido apenas para os países muçulmanos ou para os povos de tez morena.

Vivemos numa democracia quando toda a nossa vida pública é condicionada por tratados europeus que não aprovámos em eleições e cujo teor e consequências não discutimos? Vivemos sob o primado da lei quando pertencemos a uma organização onde as regras (e as sanções) não são iguais para todos? (…)

A democracia é a capacidade de eleger parlamentos, governos e presidentes e a capacidade de os demitir e substituir, mas é algo ainda mais importante: a capacidade de escolher as políticas, de escolher não aqueles a quem vamos obedecer, mas a forma como vamos viver. Não apenas os governantes, mas a vida pública. É por isso que elegemos partidos na base de programas eleitorais. Uma democracia que elege ditadores não é uma democracia. As formalidades são essenciais à democracia mas precisamos de respeitar todas as formalidades: os direitos humanos, o primado da lei, as regras institucionais, os compromissos assumidos, a transparência.

Quando chamamos “democracia” a algo como o regime que vigora na Turquia, na Rússia, na Venezuela ou em Angola - ou na UE - estamos a aviltar o conceito de democracia e a justificar todos os ataques que os inimigos da democracia lhe queiram lançar.»

José Vítor Malheiros

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