8.7.17

Tribulações de um Governo optimista



José Pacheco Pereira no Público de hoje: 

«Responsabilidade política - A discussão sobre a responsabilidade política está muito viciada em Portugal e, se em parte suscita problema políticos reais, por outro lado está de tal maneira mergulhada quer no populismo, quer na partidarite, que se torna quase impossível ir ao núcleo duro da questão. Esse núcleo duro não é especialmente difícil de definir: um responsável político que foi avisado interna ou publicamente de um problema com os serviços sob sua chefia e desprezou a informação, tendo dessa inacção resultado desastres, perdas de bens, feridos e mortos, não pode fugir a ser responsabilizado com gravidade. E se acrescentar isto uma tentativa de ocultação, então é tudo mais grave. Aí o pedido de demissão de um ministro ganha sentido.

Foi o caso da Torre Grenfell em Londres em que havia avisos mais que suficientes de que existia risco de incêndio e nada foi feito. Ou, no caso português, os sucessivos relatórios (nos governos Passos Coelho e Costa) que apontavam deficiências ao sistema de comunicações de emergência, e que não foram tidos em conta. Depois, há graduações ou distribuições de responsabilidade que podem ter em conta várias formas de negligência ou uma condução errónea e caótica de um processo em curso e que funcione como revelador ou de incapacidade para o exercício de funções, ou insensibilidade face à gravidade do que estava a acontecer. Aqui, já a questão da responsabilidade política é menos evidente, podendo existir, sendo no entanto os critérios mais fluídos e dependentes do contexto. (…)

A protecção dos paióis – Não há palavras que não sejam duras para classificar o modo como em Tancos estavam protegidos os depósitos de armamento. Desleixo é pouco, negligência criminosa é melhor, se é que não se vem a verificar cumplicidade com o crime, tão espantosa é a situação daquelas que são as mais sensíveis instalações de uma unidade militar. E não adianta vir com a falta de videovigilância ou os buracos na rede. Se há coisa que existe em abundância numa unidade militar, são militares. E mesmo que o paiol estivesse num armazém sem qualquer vedação, é suposto haver, 24 horas sobre 24, homens e mulheres fardados em quantidade suficiente para o vigiar e proteger. Tudo o resto são aqui desculpas, mesmo que tudo o resto remeta para outra questão que diz respeito à degradação das instalações militares, no plano do hardware e a perda do ethos marcial no plano do software. São problemas muito sérios, não são alheios ao que se passou, mas a sua causalidade não é directa e não servem de desculpa para a negligência criminosa que permitiu e ajudou o assalto. (…)

Quem roubou e para que roubou – Vamos admitir a hipótese mais benigna: de que se trata de um roubo de criminalidade comum destinado a ganhar dinheiro com a venda do armamento no mercado de armas e nada tendo a ver com organizações terroristas, pelo menos no acto do roubo e no destino previsto para as armas. Esta hipótese só é benigna porque admite que o roubo não tenha sido feito directamente por um grupo terrorista, porque em tudo o resto ela é bem pouco benigna. Primeiro, quem roubou o material de guerra, este tipo de material em particular, é pressuposto que conheça como fazer chegar as armas ao mercado ou tenha um ou vários compradores. Segundo, porque este terreno é muito complicado, porque é difícil que esse mercado seja nacional. Isso significa que a logística tem que estar preparada para armazenar o produto do roubo, e fazê-lo chegar a qualquer destino.

Há em Portugal organizações criminosas com este know how e ligações? Essas organizações são portuguesas ou internacionais? E aqui soma-se à negligência criminosa que permitiu o roubo, outra igualmente preocupante: é que uma organização deste tipo deveria estar sinalizada nos serviços de informação e, caso o tenha estado, deveria ser uma prioridade no controlo e vigilância dos seus putativos membros. Esses criminosos têm que ter tido, no passado ou no presente, treino militar e conhecimentos sobre determinado tipo de armamento mais pesado, muito para além das armas ligeiras cuja manipulação está bastante disseminada, para compreender explosivos, granadas, detonadores, armas anticarro, etc. Tudo isto é pesado, perigoso de manipular. Algumas mafias estrangeiras, em particular as do Leste que actuam em Portugal, tem este tipo de conhecimentos, mas também presume-se estarem no radar das polícias e dos serviços de informação. Não é suposto um grupo destes materializar-se de um dia para o outro, conhecer as nossas unidades militares com paióis deste tipo, as suas fragilidades, disporem de gente que saiba escolher o que rouba, o transporte e depois o faça chegar a mercados de armas que possam valorizar este tipo de material, e que não é a pistola vendida à sucapa numa feira.

Só nos resta esperar que nada disto se tenha verificado e que meia dúzia de amadores, que vem filmes a mais, e que sabiam que, nos paióis de Tancos, era só chegar e servirem-se, tenham as armas num qualquer armazém de self storage, para depois as venderem pouco a pouco para ganharem uns dinheiros. Não é impossível, mas parece pouco provável.

Optimismo – Há aqui uma lição para governos e governantes: o optimismo pela sua própria natureza nas questões públicas dura sempre pouco e é muito frágil. A realidade está sempre mais próxima do que corre mal do que o que corre bem.» 
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