Excerto:
«Há uma estirpe de sectarismo que é simplesmente ignorar ou desprezar o passado, como se o tonante acabado de chegar inaugurasse um universo vazio, sem história. Todos caminhamos sobre o nosso passado e é bom lembrá-lo e respeitá-lo. Sim, chegamos depois de outros e o que aprendemos foi com eles. Se cada pessoa tivesse começado do zero, seria nada. (…)
Há, no entanto, outra forma de sectarismo, porventura mais agressiva. É o sectarismo já não contra o passado, mas contra o presente. É o que em política se pode definir assim: o sectário é o que detesta quem dele está mais próximo e com quem seria mais fácil e mesmo natural cooperar. Esse sectarismo é uma consumição. Destrói uma força política por dentro e, como a história portuguesa está cheia de exemplos, todos com o mesmo destino, vale a pena reflectir sobre esse perigo.
Antes de escrever sobre esse perigo, uma palavra de precaução. Na vida pública, num grupo de teatro, num partido político, num sindicato, numa associação, criam-se sempre identidades, que são necessárias e úteis. Quem vive em comum uma luta social, uma campanha eleitoral, a encenação de uma peça, cria laços e esses laços fazem comunidade. Somos animais comunitários e ainda bem. Aprecio por isso os cânticos, até as frases que parecem imitadas de uma pessoa para outra, as liturgias, as alegrias, o orgulho que um militante tem do seu partido ou associação. Permito-me até pensar que é porque essa força comunitária é tão importante que o sectarismo deve ser evitado.
Ora, o sectarismo é perigoso porque é fácil. Ele cria um sistema de sinais e de referências auto-suficientes que, servindo para delimitar, também fecha o grupo numa redoma. A pertença é nesse caso definida pela partilha de uma linguagem tribal e pela rejeição de quem não a reconhece. É por isso que o sectarismo precisa da intriga que aponta os inimigos, exigindo com ansiedade a criação de fábulas ou de engrandecimento (o que se pode chamar caciquismo ou culto da personalidade) ou de desprezo (os outros são seres inferiores).
É, assim, uma forma de imunização à realidade: para o sectário, o que quer que aconteça pode ser lido numa rede de conspirações que nos perseguem, o que exclui qualquer responsabilidade. O mito da infalibilidade precisa de agigantar os monstros que nos atacam pois, a haver falhanço, a responsabilidade deve sempre resultar da dimensão e do armamento dos fantasmas que nos cercam.
Por isso, o sectarismo é uma armadilha para o sectário: prende-o no seu universo. O problema é que não aprender com o próximo não é um ataque nem é uma defesa, é uma fragilidade. Não ouvir o que nos diz a sociedade é uma forma de enclausuramento voluntário. Um bom conselho contra o sectarismo é: não atravesse a rua sem olhar para os lados.»
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