«Não é apenas o mundo global idealizado pelos americanos que está a ruir. É também a própria ideia de unidade europeia, criada à volta das sementes do Iluminismo, quando a Europa era considerada a autoridade moral que era olhada como referência moral, política e mesmo económica e social. Continente de migrações constantes e de fronteiras porosas, solidificada por uma moeda comum e por uma burocracia tentacular, a União Europeia foi um sonho que rapidamente começou a ser dinamitado quando a Grã-Bretanha decidiu não entrar no euro, impedindo que o petróleo do mar do Norte passasse a ser cotado nos mercados internacionais na moeda europeia. O dólar tinha aí a sua vitória. Hoje os EUA olham para a Europa unida como um alvo a abater. Washington não quer aliados: quer nações devotas. Por isso, dividir para reinar é a nova tese.
Quando Angela Merkel cair, que sobrará do sonho europeu de alguns? A crise migratória apenas pode acelerar a destruição da UE. Na era em que o dinheiro navega pela internet, os seres humanos viajam em barcos frágeis. É este o mundo da pós-verdade. E a UE continua sem ser capaz de dar resposta a este desafio que não vai parar, mesmo que Espanha receba umas centenas de migrantes e Portugal e França outros milhares. A política de destruição das zonas-tampão na Síria e na Líbia (a pretexto da "democracia", que como se sabe foi implantada naqueles países depois da intervenção militar dos EUA, de França e da Grã-Bretanha), a falta de investimento europeu na metade superior de África, e outros equívocos criaram a bomba-relógio que agora chegou à Europa. Afinal a globalização não alimentou uma "empatia global" (em que alguns acreditaram), e a conexão global ficou-se pelos cidadãos sem pátria que viajam nas classes executivas e tratam de tudo por via digital.
A política de austeridade cega e a forma como foram abandonados os países que têm fronteiras como o Mediterrâneo geraram esta situação. Não admira que Grécia, Itália e Malta estejam fartos. E os populistas bebem aí a água tónica. Donald Trump, Matteo Salvini ou Víktor Orban são apenas a linha da frente para o que aí vem. O problema é que, neste momento de grandes incertezas, a disparidade de interesses nacionais e mesmo os diferentes posicionamentos ideológicos estão a desintegrar a comunidade de países europeus. E como esta questão é muito emocional o problema torna-se ainda mais grave.
Conseguir travar o fluxo de migração africana de forma sensata só é possível com a criação de condições económicas, sociais e políticas de estabilidade e desenvolvimento sustentado na metade superior do continente africano. De outra forma será impossível fazer muros para evitar que os migrantes assaltem o "castelo europeu". É aqui que ainda existe um sonho de sobrevivência e possível sucesso para eles e é isso que os leva a arriscar a vida nas águas do Mediterrâneo. Porque, para trás, deixam lugares que lhes ameaçam a vida e não lhes oferecem nenhum destino. Ou seja, esta discussão é complexa, mas fácil de ser sintetizada por políticos, ora populistas ora burocratas. O destino da Europa unida também se discute aí.»
Fernando Sobral
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