Daniel Oliveira no Expresso diário de 10.07.2018:
«Houve um tempo em que um telejornal fazia um país. Um telejornal e uma novela. Víamos todos as mesmas coisas e no dia seguinte falávamos todos das mesmas coisas. E isso dava-nos a consciência viva de fazermos parte de uma mesma comunidade. O que no tempo dos meus avós acontecia na aldeia ou no bairro, com os seus pequenos dramas, alegrias e inconfidências contadas no barbeiro, no cabeleireiro ou na igreja, passou para o país, na televisão e na rádio. Depois vieram as televisões privadas e as coisas mudaram. Já não víamos exatamente o mesmo. Até que veio a internet e esse mundo morreu. Morreu mesmo? Não. Ficou apenas ainda mais pequeno.
É verdade que parte da população passou a viver em comunidades eletivas. Comunidades que pensam e agem da mesma forma, mesmo que vivam no outro lado do planeta. Têm as mesmas opiniões políticas, partilham taras sexuais e gostos musicais. Mas não sejamos ingénuos, eu vibrei com a eleição de uma congressista socialista em Nova Iorque, os norte-americanos, mesmo os mais informados, nem sabem se elegemos os nossos deputados. Nem sequer se os temos. As autoestradas de informação continuam, como sempre, a ter um sentido único. A não ser para quem procure lugares inexplorados, como antes procuraria através de assinaturas de jornais estrangeiros.
Há um país, em todos os países, que ganhou acesso a um mundo distante. É uma minoria. A maioria continua fechada nos limites da proximidade, informando-se pela televisão ou apenas acompanhando na internet as polémicas nacionais. Os telejornais nunca foram, aliás, tão domésticos como são hoje. E quem faz programas de debates sabe que um assunto internacional faz cair as audiências para metade num só minuto. A ideia de que vivemos ligados ao mundo é uma ilusão das elites. Para a maioria, vivemos ainda mais fechados na nossa pequenez. O que quer dizer que há uma elite cada vez mais globalizada e uma maioria cada vez mais nacionalizada. Isto é assim na informação, na cultura e, é bom recordar, na política, com as consequências que temos visto. O que quer dizer que elite e povo, se quisermos fazer uma separação tão simples das pessoas, deixaram de viver na mesma comunidade. Uns vivem no mundo – até porque viajar deixou de ser um luxo de ricos e é acessível à classe média –, outros vivem no país ou, como se passa nos EUA, no estado ou na comunidade.
Há momentos especiais que, por serem extraordinários ou traumáticos, recordam um destino comum das nações ou das pequenas comunidades. E o mesmo acontece no mundo. É o caso da história das crianças tailandesas. Nem preciso de escrever mais, toda a gente sabe de que crianças estou a falar. O mundo todo, em todo o lado, acompanhou em direto este drama. Especialistas de espeleologia, psicólogos e mergulhadores foram a todas as televisões do planeta para partilharem, em centenas de línguas, tudo o que sabem. Todos conhecemos os rostos daquelas crianças. Estivemos ligados pelo seu destino.
Antes de começarmos a imaginar uma solidariedade global, é bom recordar as milhares de crianças que morrem com fome ou afogadas a tentar chegar à Europa, perante a nossa total indiferença. O que nos prendeu a esta história foi a narrativa insólita e de final incerto. Uma história suficientemente longa e emocionante para nos agarrar àqueles miúdos. Eles conseguiram, pelo espetáculo que nos oferecem, prender a nossa atenção e com isso conquistaram o lugar de pessoas e não apenas de notícias. Somos empáticos com o que conhecemos e isso exige atenção. Eles tiveram a nossa atenção.
Estivemos todos agarrados a esta tragédia, assim como nos prendemos ao drama dos 33 chilenos que, em 2010, ficaram presos numa mina e até acabaram protagonistas de um filme. Já estamos, aliás, a realizar nas nossas cabeças o filme sobre os meninos da gruta tailandesa. A parte boa é que estas tragédias nos permitem reconquistar uma sensação de pertença a uma comunidade humana. Estamos todos, em quase todo o mundo, a ver o mesmo, a sentir o mesmo, a esperar o mesmo. É coisa rara e tem, como para as comunidades locais ou para as nações, uma função importantíssima. Ao contrário das comunidades eletivas que formamos nas redes sociais, em que a empatia com o outro depende da sua semelhança quase absoluta connosco, há nestes momentos um reencontro com a natureza humana que transcende todas as nossas outras condições. Todos temos medo, todos queremos sobreviver. E isso é bom. Sobretudo se acabar bem.»
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