«O nosso mundo perdeu a vergonha, se é que alguma vez a teve. Só o preocupa o que o pode sossegar. E só o desassossega as grandes notícias que absorve.
Na verdade, deixar que nos digam o que está certo ou errado é desde logo um modo de nos formatar no que se refere aos grandes acontecimentos que marcam a vida das pessoas e das comunidades. Seguindo o trilho, evita que tenhamos de pensar. Pensar é trabalhoso. Olhar é mais fácil.
É a essa luz que de vez em quando somos abanados por notícias que vão directamente para as paredes mais sensíveis das nossas almas.
As notícias frenéticas e brutais do envenenamento de um espião russo que passou a trabalhar para o Reino Unido, trocando de patrão, colocaram o mundo ocidental a expulsar, em catadupa, diplomatas russos, não sendo ainda hoje claro quem foi o autor do envenenamento. Em represália, Putin procedeu do mesmo modo.
Esta semana, um autocarro cheio de crianças iemenitas foi atacado no Norte do Iémen por aviões sauditas causando a morte e ferimentos a mais de 70. Tais mortes não mereceram sequer reparos por parte dos governantes que expulsaram os diplomatas russos. Até os media, em geral, se mantiveram indiferentes.
Os assassinos das crianças justificaram o ataque para prevenir que elas pudessem vir a ser usadas como escudos... Isto é, os sauditas invadem o Iémen para matar crianças porque temem o futuro e sabem que ocupam terra que não é sua.
Trump, desmiolado, preocupado em mandar no mundo a partir de um exército espacial, como nos filmes, apoia fervorosamente a Arábia Saudita. Tem uma paixão desmedida pelo príncipe herdeiro saudita e por Netanyahu; une-os o seu ódio aos palestinianos e iranianos. São homens que prezam armas e a morte.
Choca que os mortos que lutam pelos seus direitos nacionais sejam danos colaterais acidentais dos amigos ocidentais. Por quanto tempo os mais poderosos vão poder continuar a fazer deste mundo arenas de horror?
As crianças mortas pelos mísseis sauditas vendidos pelos EUA constituem uma marca indelével da ferocidade do regime absolutista de Salman. Estas mortes são crimes contra todos os seres humanos justos e passiveis de humanismo. Violam o direito internacional de modo grosseiro e violento.
Bem andou António Guterres em ordenar na ONU um inquérito, embora se saiba que quando chegarem as conclusões as emoções andem por outras bandas.
Por cá, como não houve mortes no incêndio de Monchique, andam a descobrir as falhas do Governo, servindo em doses cavalares reportagens pornográficas das desgraças dos desgraçados.
De tantos mundos é feito o mundo em que vivemos. Se as crianças iemenitas assassinadas a sangue frio por mísseis sauditas fossem ocidentais, já aviões destes países estavam a disparar mísseis para vingar as criancinhas, como gosta de alegar Trump para justificar os bombardeamentos da Síria. As da Síria alegadamente vítimas de bombardeamentos sírios fazem o mundo chorar; as do Iémen não devem ser humanas. Os mortos humanos não são iguais. Há os que não contam; eram empecilhos, podiam vir a ser terroristas.»
Domingos Lopes
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