30.10.18

Brasil, uma democracia automutilada



«Tendo o seu partido (PSL) uma bancada mais pequena do que o PT tinha, Bolsonaro fará os arranjos que o PT fez. E da mesma forma, porque no Brasil não há outra. Os mesmos corruptos continuam num Congresso que foi eleito da mesma forma alimentando o mesmo sistema político disfuncional. Depois da Lava-Jato cumprir a sua função, tudo voltará ao normal. Até porque, na sua longa carreira de parasita sem qualquer trabalho relevante no Congresso, Bolsonaro sempre viveu bem com partidos que recebiam “propina”. Com o programa económico de Paulo Guedes, Temer também continuará. Mas em muitíssimo pior. E o governo não será mais eficaz do que os anteriores. A impreparação de Jair Bolsonaro é o que mais o aproxima de Trump. Qualquer otimismo só pode resultar de cegueira.

As margens do subdesenvolvimento brasileiro serão as primeiras a experimentar a mudança. Em dose aumentada de força bruta que a abjeta elite brasileira sempre adorou e que não incomoda uma classe média moralmente anestesiada pela violência que a desigualdade impõe ao quotidiano. A vitória de Bolsonaro chega para que os demónios se sintam mais livres. Para satisfazer o fanatismo evangélico, a intolerância acabará por se abater sobre os que acreditam que para um Estado democrático o que está acima de todos é a Constituição, não é Deus. Só no fim virão os opositores. Talvez através de mais umas operações judiciais “moralizadoras”. O resto, está no programa “patriótico” de venda do país a retalho.

Já fiz muitas análises para tentar perceber como chegaram os brasileiros ao ponto de não verem o mesmo que nós vemos quando olham para Bolsonaro. Escrevi sobre o papel das redes sociais e da crise de todas as formas de mediação. Sobre os erros económicos e as cedências do PT. Sobre o efeito que a corrupção do regime teve no partido, a ponto dele se tornar um dos pontos centrais dessa corrupção. Sobre o papel do centro-direita, o seu golpe de há três anos e a ofensiva antissocial que foi encomendada ao governo fantoche. Sobre a revolta contra uma corrupção que nada tem de novo no Brasil mas que historicamente sempre foi usada para aplacar a democracia. Mas hoje não é dia de análises. É mesmo de lamento.

Assistimos, em todo o mundo ocidental, à normalização do aberrante. De que a democracia se pode automutilar pelo voto. Que a democracia se fica por um ato eleitoral e que depois disso só nos cabe amochar. Que pode haver democracias que não sejam laicas, que não respeitem as minorias, que usem o crime para combater o crime, que violem as regras básicas do Estado de Direito. Que o discurso do medo é politicamente tão legítimo como qualquer outro desde que receba votos. Deviam saber que quem ganha eleições explorando o medo governará pelo medo e que quem promete a força para chegar ao poder usará a força para se manter no poder. Desta vez ninguém pode dizer que foi enganado. Bolsonaro deixou claro, nos 27 anos de uma carreira política medíocre, ao que vinha. E é por isso que a minha solidariedade é para os que resistiram ontem e continuarão a resistir nos próximos quatro anos. Sofro por eles, sofro com eles.»

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