30.11.18

Não é “coligação negativa”, é o mesmo que fez nascer a “geringonça”



Daniel Oliveira no Expresso diário de 29.11.2018:

«Reentrou no vocabulário mediático a expressão “coligação negativa” para definir algumas votações que juntaram esquerda e direita no chumbo ou na aprovação de medidas no Orçamento do Estado. Mesmo que eu ache extraordinário que a direita apoie a reposição das carreiras dos professores que ela própria congelou e que ainda há um ano não queria repor, podemos dizer apenas que PSD e CDS são politicamente cínicos. Não podemos dizer que houve uma coligação negativa com o BE e o PCP, que se mantiveram neste assunto onde sempre estiveram. Só se poderia dizer que houve uma coligação negativa se vários partidos se tivessem coordenado através de uma estratégia comum para chumbar ou sabotar o Orçamento do Estado ou para fazer cair o Governo. Não foi o caso.

A ideia da “coligação negativa” nasce de um equívoco. Um equívoco que explica a afirmação de António Costa, de que há uma tentativa de “desvirtuar” o Orçamento. Até à sua aprovação, não existia orçamento. Existia uma proposta do Governo. Os deputados não podem desvirtuar um orçamento que ainda não existe. Podem e devem alterar uma proposta se ela não representa a vontade da maioria. A ideia de que não o podem fazer resulta do mesmo vício “governamentalista” que marcou a nossa prática política nas últimas décadas, e que se espantou com a ideia de que não votamos para o primeiro-ministro mas para um Parlamento que depois escolhe quem governa. As coisas são ao contrário: é o Governo que, com excesso de cativações, desvirtua um orçamento aprovado, não é um Parlamento que, com excesso de alterações na especialidade, desvirtua um orçamento por aprovar.

É verdade que aqueles que defendem défice zero têm o dever de garantir que as suas propostas tem saldo nulo. Ou seja, por cada proposta com custos que PSD e CDS fizessem deviam ter apresentado uma proposta com cortes. Não é obrigatório que assim seja, mas seria um ato de honestidade política. Que já tiveram no passado, aliás.

Como muito bem nos explicou António Costa, quando chegou a primeiro-ministro apesar de não liderar a lista mais votada, é no Parlamento que repousa a legitimidade de Governo. Também então houve quem usasse a expressão “coligação negativa” para falar da “geringonça”. Uma expressão que assume que alguém tem o direito de governar contra a vontade da maioria dos deputados que representam a maioria dos eleitores. Não é assim para a formação do Governo, não é assim para a aprovação de Orçamentos do Estado.

O Governo propõe um Orçamento do Estado e negoceia para ter a maioria dos deputados. Se negociou bem antes de apresentar o orçamento, a versão final será semelhante à que apresentou. Se negociou mal, será muito diferente. Claro que se os partidos que garantem a maioria para governar participassem no Executivo o processo seria mais simples. Mas parece-me ter ouvido António Costa explicar as enormes vantagens de não ter BE e PCP no Governo. Também tem desvantagens. E se António Costa e Mário Centeno decidiram empurrar com a barriga alguns assuntos, é natural que tenham sido obrigados a lidar com eles quando chegou a altura de fazer votações na especialidade. É para isso mesmo que elas servem: para “desvirtuar” orçamentos.

Tenho sido bastante crítico em relação a todas as formas de ingerência europeias sobre os parlamentos nacionais na aprovação de Orçamentos de Estado – o que até já me pôs na posição desconfortável de apoiar o Governo italiano na sua contenda com Bruxelas. Levo a sério a reivindicação que fez nascer a democracia norte-americana – “no taxation without representation” –, que dá ao Parlamento o poder único e último de aprovar e alterar um orçamento. À pergunta “de quem é este orçamento?” a resposta é clara: é da República. Aprovado e alterado por quem o pode aprovar e alterar. Porque o Governo não representa ninguém a não ser a maioria dos deputados que representam a maioria do país. Foi isso que em boa hora a “geringonça” nos recordou. E isto exige governos politicamente mais talentosos e menos autossuficientes. É bom para a democracia.»
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