«Imagine o seguinte cenário: entra numa urgência hospitalar com uma fratura exposta num braço e é-lhe prescrita uma pomada dermatológica à base de cânfora inventada por um "endireita" habilidoso que "atende" nuns anexos.
Estranho, no mínimo. Agora imagine que há um juiz que decide inspirado na Bíblia. É, numa comparação propositadamente exagerada, uma aberração da mesma índole. E não apenas por sermos um Estado laico. Mas porque uma e outra enfermam de uma grosseira subjetividade num contexto em que apenas deveria haver objetividade.
Aludo, obviamente, a Neto de Moura, o juiz que, depois de ter citado as escrituras num acórdão em que censurou uma mulher vítima de violência doméstica por esta ter sido infiel ao marido, decidiu, mais recentemente, pela revogação da aplicação de pulseira eletrónica a um comprovado agressor que perfurara, a soco, o tímpano da companheira, escudando-se no facto de os juízes da primeira instância não terem fundamentado devidamente a necessidade de o homem ter de continuar a ser "controlado" através desse expediente.
A tentação para lançar novamente a toga de Neto de Moura para a fogueira é grande mas, descontando as observações moralistas e machistas que, mais uma vez, o juiz fez questão de verter, a sua decisão, neste caso, parece estar escudada na lei (na perspetiva da salvaguarda dos direitos das partes) e não é comparável à situação anteriormente descrita (embora o juiz, na dúvida, pudesse ter pedido para melhorarem a fundamentação inicial, o que não fez).
Na verdade, o que este segundo acórdão nos vem dizer é que a discussão mais importante talvez não esteja a ser feita. Como estão redigidas as leis, se são adequadas à realidade e, acima de tudo, se salvaguardam os interesses das vítimas. Basta dizermos que esta mulher esteve mais protegida do antigo companheiro enquanto este foi arguido do que depois de ter sido condenado. E que vive agora num renovado sobressalto.
E isto acontece porquê? Porque depende sempre da vontade do agressor usar pulseira eletrónica. Donde, as leis não estão pensadas para defender as vítimas. E um sistema justo não pode premiar quem agride. Porque um sistema assim é uma passadeira vermelha para as convicções inabaláveis de juízes como Neto de Moura.»
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