«Li nesta semana no Twitter que "foi muito rápida a resolução do caso Neto de Moura". Referia-se quem o disse ao facto de o presidente da Relação do Porto ter anunciado a transferência do juiz da secção criminal para a secção cível. Há pelos vistos quem considere isto uma "resolução" - como em solução do problema, não em "resolução do BES". Mas o ocorrido é muito mais parecido com o segundo caso.
Que quero dizer com isto? Que não se solucionou nada, e que a judicatura, apavorada com o enxovalho ao juiz e, por arrasto, à função, resolveu que alguém que durante anos a fio desculpabilizou, em termos escandalosos, imbuídos de uma moral ultramontana e não raro insultuosos, a violência sobre as mulheres - foram encontrados acórdãos e decisões com essas características assinados por este magistrado desde pelo menos 2010, como demonstrou Garcia Pereira num artigo recente; que, nas palavras de um membro do Conselho Superior de Magistratura, "desconhece ou despreza princípios essenciais do Estado de direito"; que em 2018, já sob processo disciplinar, se queixava ao Supremo de uma "campanha de perseguição" e de lhe andarem a "escabichar" as decisões, demonstrando ser incapaz de perceber que a justiça, sendo administrada em nome do povo, é por definição pública, escrutinável, e do povo, pode continuar a julgar. A decidir em nosso nome, a impor a sua revoltante e inconstitucional mundividência - reconhecida, em declarações de voto, pelo presidente do Supremo Tribunal e pelo vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura - a quem tenha a desdita de lhe cair nas mãos.
Aliás o próprio presidente da Relação do Porto, Nuno Ataíde das Neves, teve a honestidade de reconhecer que a transferência "não resolve nada, mas atenua". E atenua o quê? Obviamente, a tempestade que se abateu sobre a justiça, e que o magistrado refere como "uma crise de confiança dos cidadãos". Mas, como Ataíde das Neves sabe, trata-se apenas de "pôr a poeira debaixo do tapete" - na expressão usada por Paulo Pimenta, presidente do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, na RTP3. Porque, como bem perguntou este causídico, "isto foi feito para proteger o juiz ou a comunidade? É o Dr. Neto de Moura que tem de ser defendido da população ou a população que tem de ser defendida do Dr. Neto de Moura?"
Para prosseguir dizendo o óbvio: "Porque o problema deste juiz não se coloca só naquele tipo de processos [de violência doméstica]. Se o problema dele é de conceção da família, dos papéis do homem e da mulher, vai verter essas conceções nas decisões que tenham a ver com a família." E mais: "Existem vários netos de moura, e afastando Neto de Moura não se resolve o problema. Há juízes que chegam aos tribunais superiores sem nunca terem sido verdadeiramente escrutinados sobre a sua personalidade - porque isto é um problema de personalidade, da formação deste senhor. Isto é um problema de critério de acesso à magistratura."
É isso mesmo, e é por ser esse o problema que ninguém pode ficar "pacificado" por se varrer Neto de Moura para baixo do tapete. Porque é preciso lembrar que um juiz assim chegou ao Tribunal da Relação e foi consistentemente classificado com "muito bom" - e assim continuaria até chegar, provavelmente, ao Supremo, se em 2017 alguém não tivesse passado "cá para fora" o seu acórdão da "mulher adúltera", levando à revelação de um outro do mesmo ano com as mesmas características (foram esses dois que estiveram em causa no processo disciplinar que lhe foi movido, já que muitas decisões suas anteriores que mereceriam igualmente censura já não eram suscetíveis de tal por prescrição).
O que isto nos diz, como Paulo Pimenta sublinha, é que não existe nenhum sistema de veto que permita afastar juízes estridentemente incompetentes. Que não há critério. Que um juiz pode desprezar acintosamente a lei, a Constituição, as convenções internacionais, e nada sucede. Que pode inclusive difamar em decisões, e ter colegas a assiná-las, procuradores a lê-las, advogados a acatá-las e nada suceder - o que também deve ser matéria de reflexão para a Ordem dos Advogados e para a PGR.
Em 2017, a associação Capazes, a UMAR e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima subscreveram uma petição, que teve mais de 28 mil assinaturas (incluindo a minha), requerendo não só a abertura de um inquérito disciplinar aos juízes signatários dos dois referidos acórdãos de 2017 mas uma série de medidas com o objetivo de tornar o sistema mais transparente e justo. Entre elas, a exigência de que todas as decisões de tribunais superiores sejam tornadas públicas e acessíveis através da internet - não são e, frise-se, a do "acórdão da mulher adúltera" ainda não o tinha sido quando foi divulgada, o que significa que poderíamos nunca ter tido dela conhecimento; que os magistrados tenham obrigatoriamente formação para a igualdade de género; que os institutos da escusa e suspeição (que permitem pedir a substituição de um juiz num processo) fossem clarificados pelo CSM e se necessário submetidos a alteração legislativa.
Nenhuma destas solicitações foi atendida; o CSM não respondeu sequer à petição e quando, em fevereiro, perguntei ao Conselho porquê, não obtive resposta. Igualmente nada se fez em relação às normas de avaliação dos juízes, que como Garcia Pereira denuncia no artigo citado são secretas (como? porquê?); nem se discutiu sequer algo que este caso demonstra ser urgente - a imposição de inspeções periódicas, de rotina, aos tribunais superiores, já que estas só existem nos inferiores. Ou seja, o sistema não mexeu. E perante a justa revolta face ao caso Neto de Moura, decidiu sacrificá-lo (e pouco) como bode expiatório, na esperança de que tudo fique na mesma. Cabe-nos certificar que não. Que isto não acaba assim.»
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