3.8.19

Um triste exemplo de pobreza política


«O caso passou quase despercebido no meio da maratona de votações do último plenário desta legislatura. Mas não foi menos indecoroso por isso. Em outubro de 2018, a Rede Europeia Anti-Pobreza apresentou no Parlamento um “Compromisso para uma Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza”, do qual fazia parte a ideia de que “nenhuma política sectorial deverá ser aprovada sem a prévia avaliação sobre os seus impactos na produção, manutenção ou agravamento da pobreza e da exclusão social”. Todos os partidos se manifestaram então sensíveis e abertos a acolher a proposta.

Em janeiro deste ano, foi apresentado um projeto de lei para criar esse mecanismo. O “regime jurídico de avaliação do impacto sobre a pobreza dos atos normativos”, proposto pelo Bloco, tinha sobretudo o mérito de dar centralidade ao tema, num país que tem ainda 1 milhão e 700 mil pessoas em situação de pobreza, obrigando a que se olhasse para o combate à pobreza não apenas como uma questão de “apoio aos pobres” ou de políticas sociais, mas sim como uma questão transversal a todas as escolhas políticas.

Quando a proposta do Bloco foi apresentada, o Presidente da República elogiou-a de imediato, manifestando-se “sensibilizado para ela” e o Governo, pela voz do Ministro Vieira da Silva, declarou que via “como interessante a proposta anunciada pela coordenadora do BE, ainda que seja necessário analisar a sua operacionalização”. A 22 de fevereiro, fez-se o debate e a votação no Parlamento. Nenhum partido votou contra. A proposta foi por isso aprovada e passou-se ao debate na especialidade.

Como é comum nestes casos, quando se aprova uma proposta, é porque se quer que ela dê origem a uma lei, feita com o contributo dos vários deputados na Comissão respetiva. Passou-se o mês de março, abril, maio e nada. Em junho, o presidente da Comissão parlamentar agendou o debate na especialidade, que foi adiado por três vezes, para que os partidos tivessem tempo de apresentar as suas propostas de alteração ao projeto. O prazo esgotou-se e, surpresa, nenhum partido propôs nenhuma alteração, nenhuma sugestão de aperfeiçoamento, nenhuma achega crítica. Nada.

No dia do debate na especialidade, PS, PSD e CDS anunciam que não têm nada a dizer e que dispensam a discussão na especialidade da proposta. Passa-se à votação. Ponto por ponto, juntam-se para chumbar, um a um, todos os artigos do projeto de lei que tinha sido aprovado na generalidade. Chumbaram a avaliação prévia do impacto sobre a pobreza, chumbaram a existência de um relatório bianual sobre o progresso no combate à pobreza, chumbaram a possibilidade de o Parlamento solicitar a entidades externas a avaliação sucessiva de impacto sobre a pobreza de determinadas leis e até a possibilidade de o Parlamento receber anualmente uma delegação de pessoas em situação de pobreza para ouvir, na primeira pessoa, o que se está a passar no país, ideia relativamente à qual o Presidente da Assembleia tinha manifestado simpatia. Tudo chumbado sem debate público, sem propostas alternativas, sem contributos e com a tentativa de que esta mudança de posição passasse entre os pingos da chuva no turbilhão de matérias que foram votadas na última sessão.

O processo foi insólito e lamentável. Mas o que aconteceu nas 24 horas seguintes tornou tudo isto mais surreal se não mesmo relativamente obsceno. No dia seguinte aos deputados do PS terem chumbado a proposta que antes haviam viabilizado, o PS apresentou, no seu programa, a seguinte proposta (página 100): "Consolidar e desenvolver a experiência, já em curso, de avaliação do impacto das leis quanto ao combate à pobreza (poverty proofing), consagrando a obrigatoriedade de avaliação fundamentada das medidas de política e dos orçamentos na ótica dos impactos sobre a pobreza".

Ou seja, o PS, que impediu que esta avaliação existisse por ter votado contra, propõe-se continuar no futuro o que não existe porque o PS se juntou à direita para chumbar.

Dá para acreditar?» (O realce é meu.) 

José Soeiro
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