7.8.19

Zeca Afonso é património cultural



«Tive a oportunidade de assinar a petição solicitando a declaração da obra de Zeca Afonso como de interesse nacional, nos termos da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, a Lei de Bases do Património Cultural.

O sentido político da sua obra liga-nos, a todos os que reivindicamos, ontem e hoje, a liberdade de expressão e o não sermos prejudicados por ela, o combate pelos direitos que nos são inalienáveis, de dignidade humana e de participação cívica.

Zeca Afonso exerceu a sua arte e o seu ativismo em condições de grande dificuldade, no quadro do Estado Novo. A sua música, os seus poemas, inspiraram a Oposição ao regime repressivo, iluminaram o 25 de Abril de 1974 e os primeiros anos da Democracia. À data da sua morte, em 1987, deixou-nos um legado que nos liga às raízes populares da música portuguesa, à diáspora e às inspirações musicais africanas, a sonoridades e ritmos que inspiram novos caminhos musicais, quebrando fronteiras entre erudito e popular, chegando aos pequenos lugares e às grandes salas, gerando registos musicais que se tornaram património da Cultura Portuguesa. Um património que se junta, com a obra de Adriano Correia de Oliveira e José Mário Branco, entre outros, na casa comum da Música de Intervenção.

A verdade é que não precisamos de nenhum carimbo oficial do Estado para saber que a obra de Zeca Afonso é património cultural. Todavia, o reconhecimento e a proteção estatal são importantes, para proteção da integridade da obra e da sua divulgação.

No passado dia 2 de Agosto – em que José Afonso faria 90 anos – ouvi declarações da ministra da Cultura, a propósito da entrega, pela Associação José Afonso, da petição a favor da declaração do interesse nacional da sua obra. Ela dizia que não seria possível classificá-la, até se encontrar os masters das gravações dos seus discos (aparentemente, desaparecidos, na sequência da falência da Movieplay, a editora discográfica que as detinha). A razão invocada é que sem objeto material identificável – neste caso, os masters – que possa ser circunscrito como património material móvel, para efeito dos procedimentos de inventariação e classificação, a classificação não é possível.

Ora o que me ocorre é dizer que tanto ela como o responsável pela instalação do Arquivo Nacional do Som, que sobre essa matéria também se pronunciou, têm uma visão limitada do quadro cultural e jurídico, porque partem de um pressuposto errado. Partem do pressuposto de que é preciso aceder aos masters para poder exercer um procedimento classificatório por parte do Estado. Esse pressuposto é correto, para efeito de classificação de património cultural móvel.

Conheço bem a matéria, tive a oportunidade de tomar a iniciativa de regulação do património cultural móvel, através do decreto-lei n.º 148/2015, de 4 de Agosto, e de atualização da regulação do património cultural imaterial, através do decreto-lei n.º 149/2015, também de 4 de Agosto.

Parece-me importante tratar a questão da classificação da obra de Zeca Afonso à luz da sua consideração como património imaterial, independentemente da susceptibilidade da sua classificação como património móvel e das questões autorais associadas.

A obra de Zeca Afonso não se circunscreve a uma fita magnética, a um disco, a um conjunto de discos. A sua obra é um valor no domínio do intangível. Para efeitos de classificação, veja-se o que diz o artigo 1.º do decreto-lei de 2015 sobre património imaterial: “(…) entende -se por ‘património cultural imaterial’ as manifestações culturais expressas em práticas, representações, conhecimentos e aptidões, de caráter tradicional, independentemente da sua origem popular ou erudita, que as comunidades, os grupos e os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural, e que, sendo transmitidas de geração em geração, são constantemente recriadas pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade coletiva.” Entre as manifestações de património cultural imaterial inclui-se “Expressões artísticas e manifestações de carácter performativo”.

Seja, autonomamente, como nome maior da Cultura Portuguesa, reconhecido pela comunidade nacional como parte integrante do nosso património cultural, seja no quadro da declaração da Música de Intervenção como património cultural imaterial, destacando-se Zeca Afonso como sua figura cimeira, considero haver cabimento para que se avance com um processo no sentido da sua inventariação e classificação como património cultural imaterial, dando-lhe a correspondente proteção e reconhecimento.

Tal procedimento também seria possível, por exemplo, para a obra de Fernão Mendes Pinto e da literatura de viagens do século XVI, de Fernando Pessoa e da geração do primeiro Modernismo literário, de Lourdes de Castro e do grupo de artistas visuais KWY na década de 60.

Para efeito de abertura deste procedimento, deverão os serviços da Direção-Geral do Património Cultural “abrir” o sentido interpretativo do diploma de classificação de património cultural imaterial. Assim, não se limitando à noção de caráter tradicional da obra – que segue os critérios da UNESCO –, é importante que atentem na noção de reconhecimento como parte integrante do património cultural das expressões artísticas, que também integra o diploma. Sendo que se tem orientado a classificação do património imaterial para um conceito de obra coletiva sem rosto que perpassa gerações, será importante, em casos específicos, contextualizando e conjugando o sentido coletivo, reconhecer o papel determinante de dados protagonistas. Esta abertura do procedimento classificatório terá um efeito pedagógico de grande impacto, permitindo ver e conhecer a uma nova luz, nas escolas e na sociedade, o trabalho dos artistas e escritores, consolidando e dinamizando a cultura portuguesa. A classificação da obra de Zeca Afonso como património imaterial será um passo decisivo neste caminho.»

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