7.9.19

O museu Salazar nunca existiu



«Uma coisa que agradeço é que não me contem historietas. Pois em relação à proposta do autarca de Santa Comba Dão para a criação de um “centro interpretativo” dedicado a Salazar, na terra natal do ditador, sintomaticamente a situar na cantina-escola Salazar, convenientemente sediada na avenida dr. António de Oliveira Salazar, não só nos querem contar uma historieta como, enquanto o fazem, tomam-nos por parvos.

Não faltam bons motivos para promover exercícios interpretativos do Estado Novo. Na transição para a democracia, descurou-se esta vertente, perpetuando uma certa invisibilidade da natureza ditatorial do regime, explicável pela ausência de um movimento social fascista e por uma passividade bucólica, traço marcante da sociedade. Até com uma rutura política seguida de revolução social, o país preferiu não interpretar o passado, remetendo-o para o mesmo lugar silencioso.

De certa forma, o museu Salazar, proposta que afinal nunca existiu, representa o regresso desta invisibilidade crónica do salazarismo enquanto regime repressivo e autocrático. Sintomaticamente, num artigo trôpego, o historiador Luís Reis Torgal – a quem é atribuída alguma responsabilidade científica na proposta autárquica – tentou promover uma “reflexão séria e calma” sobre o tema. E o que nos propõe (enquanto referenciava um rol de dissertações que orientou sobre os mais diversos assuntos)? Que ajudemos a autarquia a resolver o problema que é “manter em ruínas” a casa do ditador, garantindo que o que está em causa é a criação de um centro interpretativo, a partir do “espólio” de Salazar, articulando-o com outros projetos de musealização a criar na região (António José de Almeida em Penacova; Tomás da Fonseca em Mortágua; Afonso Costa em Seia e, cereja no topo do bolo, Aristides de Sousa Mendes em Carregal do Sal).

Quanto mais se sabe, pior se torna o cenário. Só uma exorbitante neutralidade axiológica e uma fúria normalizadora podem levar a que se pondere juntar, na mesma rede, republicanos insignes, figuras de cultura, democratas corajosos e referências morais absolutas com um ditador abjeto e de baixa estirpe.

Fica demonstrado que temos, como comunidade, um problema com o legado do Estado Novo. O que torna imperioso que se multipliquem centros interpretativos: nos tribunais plenários, nas antigas prisões políticas, nas fábricas, nas faculdades onde a PIDE entrou ou nas escolas onde professores foram expulsos. Em todos os lugares menos na aldeia natal do ditador.

A ideia é uma afronta à memória e, pior, adensa um espetro que paira sobre o futuro. Não sei se os historiadores de Coimbra têm dado conta, mas o regresso do fascismo não se fará de botas cardadas, com marchas militares e mecanismos repressivos como os do passado. É precisamente pela forma sonambúlica como se deixa entrever que o fascismo de hoje é assustador. Não ajudemos, por isso, a promover um voyeurismo mórbido em torno do “espólio” de um tirano.»

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4 comments:

Isa disse...

Alguém se apresenta propondo a criação da casa museu Irmã Lúcia. A edificar na casa onde nasceu a irmã Lúcia,na Avenida Irmã Lúcia,não longe da sepultura onde jaz a irmã Lúcia...
Só alguém muito mal intencionado pensará que tal poderá alargar a popularidade do Cristianismo.

Joana Lopes disse...

Claro que a criação de uma casa museu Irmã Lúcia seria uma atracção para alargar a influência do cristianismo..Está a insinuar que a Irmã Lúcia foi tão maléfica para Portugal como Salazar ou não percebi o seu comentário?

Abraham Chevrolet disse...

O que afirmo,Joana,é que o museu Salazar será sempre um dinamizador do fascismo,como a casa irmã Lúcia dinamizaria a religião da pobre Lucia.
Fui claro,agora?

estevesayres disse...

Muito tenho escrito e dito sobre este ditador e seus seguidores, sei que não vale de nada , para muitos de vós, ter sido preso, antes e depois do 25 de Abril de 1974, sei tb que ao longo dos anos tenho feito muitos amigos, mas tb sei, que muito me odeiam, por ter ousadia de os criticar.
Mas gostava que soubessem, quem tem estado por traz desta engrenagem toda, um dito social-democrata, e um dito socialista, e um social fascista. Um seja um movimento social fascista!

Um agnóstico a caminho do ateísmo