«Nos últimos quatro anos, o PS sofreu de personalidade dupla. Na primeira metade da legislatura, falou como um partido de esquerda, surpreendendo e reconfortando muitos dos que votam nesta área política. No último ano e meio, regressou às posições centristas de sempre. O que é o PS, afinal?
Na sua candidatura a secretário-geral em 2014, António Costa procurou apresentar-se como um socialista de esquerda. "Se pensarmos como a direita pensa, acabamos a governar como a direita governou" foi uma das frases que marcaram a sua campanha para as primárias do partido. O significado do mote não era óbvio, mas bastou para fazer a diferença em relação ao governo PSD-CDS e ao rival interno António José Seguro, sinalizando a vontade de ruptura com a política de austeridade seguida até então.
O distanciamento face a um discurso centrista não ficou por aí. Contrastando com o euroentusiasmo típico do PS, o futuro primeiro-ministro afirmava que os socialistas portugueses eram europeístas mas não "euroingénuos". Quase trinta anos depois da adesão à CEE, um destacado dirigente socialista parecia assim desdenhar a atitude de "bom aluno" que marcou a postura dos sucessivos governos desde 1986.
Logo após as eleições de 2015, o PS voltou a surpreender. Não apenas pelos acordos com BE, PCP e PEV, mas também pelo modo como enfrentou as pressões externas que cedo se fizeram sentir, com destaque para a ameaça de sanções por parte da Comissão Europeia.
Pouco depois do início da legislatura, o governo denunciou os contratos de associação entre o Estado e os colégios privados, uma medida que não constava dos acordos mas que recebeu o aplauso unânime à esquerda, tanto pela sua coerência na defesa do ensino público como pela coragem em enfrentar interesses instalados. Casos como este levaram a que muitos acreditassem estarmos perante um partido transformado.
À medida que a legislatura avançava, a atitude mudou. A polémica em torno da chamada "taxa Robles", em que o PS afirmou desconhecer uma proposta orçamental que o BE apresentara meses antes, foi o primeiro sinal claro de que os socialistas estavam menos interessados no ambiente de concílio à esquerda. A seguir a esse episódio vieram outros. A decisão de avançar para a revisão da lei laboral sem o envolvimento do PCP e do BE, a tensão em torno da Lei de Bases da Saúde ou as dificuldades em finalizar a proposta de Lei de Bases da Habitação foram outros momentos cruciais em que o PS se mostrou determinado em regressar à sua tradição centrista.
No último ano, a retórica conservadora subiu de tom. O equilíbrio orçamental (e já não a simples gestão responsável das contas públicas) foi erigido como elemento-chave da governação. No conflito com os professores, o primeiro-ministro dramatizou a polémica, colocando uns sectores da administração pública contra os outros e os trabalhadores do sector público contra os do privado, acusando de privilegiados aqueles que protestam e de irresponsáveis os partidos que lhes dão razão. O auge do afastamento do PS face ao discurso de esquerda aconteceu no Verão de 2019, no contexto da greve dos motoristas de matérias perigosas, em que as decisões e afirmações do governo contribuíram para pôr em causa o próprio direito à greve.
Apesar dos alertas contra os perigos de "pensar como a direita", a postura de António Costa no último ano e meio sugere estarmos perante o regresso ao antigo PS centrista, após um interregno de aproximação à esquerda nos primeiros anos de geringonça.
Uma explicação cínica diz-nos que nada disto tem que ver com hesitações ou opções ideológicas. Que o PS faz o discurso que for necessário para chegar ao governo e nele permanecer, como faria qualquer partido de poder. Demarcar-se da estratégia da troika era necessário para vencer eleições. Agradar ao PCP e ao BE era necessário para aprovar os Orçamentos do Estado. Distanciar-se do discurso das esquerdas permitia aproximar-se do eleitorado ao centro, alargando a base de apoio do governo e até da geringonça. Adoptar uma atitude agressiva contra quem protesta (típica de governos de direita) seria uma opção racional para quem pode aspirar a uma maioria absoluta.
O tempo dirá se esta evolução no discurso é mais ou menos superficial e se contribui ou não para os resultados eleitorais desejados. Mas um problema fundamental persiste: hoje sabemos quase o mesmo quanto sabíamos há quatro anos sobre o que quer o PS.»
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