«Aparentemente nada liga a exumação de Franco do Vale dos Caídos e as pesadas penas determinadas pelos tribunais espanhóis contra um grupo de independentistas catalães. Mas os dois acontecimentos estão umbilicalmente ligados ao modo como Espanha fez a sua transição para a democracia, por uma evolução outorgada pelo caudillo e conduzida nos seus primeiros passos em total respeito pelas suas determinações e por homens que foram da sua confiança e escolha. Esses homens co-criaram com todas as forças da oposição, legal e ilegal e com os regressados do exílio, um sistema constitucional e um Estado social e democrático de direito, que levou Espanha à rota do sucesso económico, à modernização social e à União Europeia. Uma história de sucesso, portanto. Mas um sucesso que se fez da manutenção de muitos tabus que uma revolução teria derrubado e produziu soluções sub-ótimas para questões essenciais.
A quem pareça estranha esta tese permito-me recordar quão mal resolvida continua a questão da memória histórica da guerra civil e quão desigual continua a ser o tratamento dado à memória de vencedores e vencidos.
Há muito mais questões políticas e sociais em que o franquismo condicionou a democracia espanhola. Uma das questões essenciais que ficou por resolver é a da profunda contradição entre a Espanha que Franco sonhou e lutou para erguer, centralizada, una, castelhana, de um só povo espanhol e a que o fim do século XIX anunciava, descentralizada, plural, feita de povos e culturas diversas.
O franquismo negou com todos os meios repressivos de que dispunha o respeito pela pluralidade nacional de Espanha. A certa altura, alguns movimentos nacionalistas responderam-lhe com a luta armada que alguns levaram até ao anacronismo, prolongando-a como fizeram os bascos, pela experiência democrática adentro e com isso atrasaram a formulação democrática e pacífica da discussão sobre a convivência entre nações numa Espanha unida.
A Constituição espanhola tratou o assunto com o compromisso possível entre os negacionistas da diversidade de povos de Espanha e os que procuram uma Espanha plurinacional. Os governos democráticos espanhóis adotaram claramente duas políticas complementares para enfrentar a questão. Por um lado, a repressão sobre os movimentos terroristas até à sua derrota total e, por outro, uma devolução de poderes às autonomias.
A devolução à espanhola aliada à derrota da ETA pareceu por algum tempo conter os movimentos nacionalistas no quadro institucional saído da transição. Mas o fim do espectro do terrorismo foi um catalisador das estratégias nacionalistas pacíficas. Estas teriam que virar-se necessariamente para a evolução institucional e foi aqui que os partidos nacionais espanhóis falharam.
É certo que os nacionalistas catalães não foram especialmente avisados na sucessão de gestos que culminou nestas sentenças. Podiam ter estudado a lição escocesa e estariam hoje em melhor posição, na posição em que está o Scotish National Party. Não podiam agir ignorando que não têm a Constituição e o Código Penal do seu lado.
Mas não é realista pensar que o problema catalão se resolve fingindo que não há apoio popular suficiente às teses independentistas. Pode bem ser que a maioria dos catalães nem queiram a independência. Mas há pelo menos uma minoria suficientemente larga que se expressa votando em forças que fazem dela a sua causa principal.
Ou vai haver uma ordem jurídica que permita um referendo para a autodeterminação dos catalães ou um acordo político que torne a urgência desse referendo irrelevante. Mas essa evolução não desafia apenas os nacionalistas. Desafia também os partidos nacionais espanhóis. Aproxima-se o momento em que as duas visões de Espanha terão que clarificar águas.
Visto de fora o caminho mais adequado seria baixar a tensão desde já, admitir a possibilidade de perdão de penas para os condenados e abrir novas portas de diálogo que permitam encontrar vias institucionais para o aprofundamento da autonomia e aceitar discutir a evolução para uma Espanha federal. Mas isso implicará o PSOE afastar-se claramente do PP, dos Ciudadanos e do Vox e que o rei seja mantido em silêncio sobre uma questão em que até agora fez estragos sempre que interveio. Nesta questão, ele não é símbolo de unidade, mas de poder imposto.
Em alternativa, a democracia espanhola pode radicalizar o nacionalismo catalão (outros poderão seguir-se) e manterá presas pessoas que cometeram o crime de terem ideias sobre a autodeterminação do seu povo e terem usado o poder que democraticamente ganharam para lutar pela sua causa com urnas e votos. Ou seja, se assim for, será a visão de Espanha de Franco a triunfar por agora, no momento em que simbolicamente perde o seu lugar de herói nacional.»
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3 comments:
Não li ainda, só o título, mas não se joga só a Espanha. Há muitas catalunhas por essa Europa fora...
Lembro-me dos bascos.independentistas.
Franco garrotava-os em série, em Vitória...
Desconheceriam o caminho para a Bélgica?
Lembro-me dos bascos.independentistas.
Franco garrotava-os em série, em Vitória...
Desconheceriam o caminho para a Bélgica?
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