8.10.19

Outra vez a rábula de um acordo não escrito?



«Fechadas as urnas, encerrado o expediente da contagem e da primeira vaga de comentários, abre-se uma fase de negociações, que poderão vir a ser longas, para a definição do programa de Governo. Mas essa negociação tem duas diferenças em relação a 2015. A primeira é que o PS venceu as eleições e portanto formará Governo, independentemente das circunstâncias do acordo com este ou aquele parceiro. Não é coisa pequena e a mudança foi festejada na noite socialista. A segunda é que, ao contrário do que o então Presidente e as condições concretas exigiam em 2015, agora ressurge um fantasma que só apareceu muito depois do rescaldo da eleição anterior e passou a pairar nos anos seguintes, o da eventualidade de um acordo não escrito que suporte a ação do Governo. Há no espanejar dessa eventualidade uma reescrita da História, dado que não foi nem só nem fundamentalmente pela teimosia de Cavaco Silva que esses acordos, chamados carinhosamente de “posições conjuntas”, vieram a ser assinados. De facto, foram necessários porque é assim que se estabelecem compromissos políticos, com objetivos, com calendários e com regras.

Um acordo não escrito é uma aberração. Só pode ser uma de duas: ou um acordo vazio, limitado portanto à submissão de um partido a outro, sem compromisso algum com políticas concretas, portanto um cheque em branco; ou um acordo com medidas que são mantidas em segredo e não são comunicadas nem aos próprios partidos nem à opinião pública. Ou não tem nada, ou o que tem é secreto. Ou é farsa ou é biombo. Em ambos os casos, seria um procedimento lamentável.

E, se gosto dos apertos de mão e elogio a cordialidade entre responsáveis políticos, acharia censurável o cinismo que escondesse aos eleitores o que os partidos querem fazer depois dos votos contados. Penso mesmo que Portugal precisa exatamente do contrário, de políticas que estruturem uma resposta sólida, trabalhada com cuidado, exequível e ousada, para uma mudança calendarizada no serviço de saúde, na oferta de habitação, no investimento público, na política salarial e na proteção social, nas condições da lei laboral, entre algumas outras matérias (escrevi no último Expresso o que me parece ser a agenda útil para essas conversações). E os resultados de conversas recatadas e com tempo devem ser depois comunicados à opinião pública, por transparência democrática e porque é assim que faz política com compromisso e consistência.

Se é simples, isso é outro assunto. Não pode ser de outra forma. Mas é difícil. As indefinições do programa do PS ou a falta de verbas nas contas de Centeno, que, tal como foram apresentadas na campanha eleitoral, não permitem nem a concretização de um programa de habitação nem os aumentos da função pública, para dar dois exemplos, demonstram o quanto há que caminhar para soluções úteis. O PS terá de sair da sua zona de conforto, como se costumava dizer. Uma coisa, no entanto, é certa: a menos que queira concretizar o que o primeiro-ministro sugeriu misteriosamente no final da campanha, uma crise política programada para daqui a dois anos (porquê dois anos, poderia perguntar-se?), o novo Governo terá de contribuir para entendimentos sólidos sobre as questões mais difíceis que ficaram fora da agenda do mandato anterior. Ainda bem que isso vai ser exigido a todos os partidos, porque afinal é disso que precisamos.»

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