1.1.20

Revolta de Beja – Um texto de Paulo Varela Gomes



Republica-se hoje muita informação sobre a Revolta de Beja, que teve lugar no dia 01.01.1962. Prefiro divulgar de novo este magnífico testemunho de um filho de um dos principais protagonistas dessa desesperada tentativa de libertação, que entretanto também nos deixou.

Aquilo que é necessário

Na manhã do dia 1 de Janeiro de 1962, eu, o meu irmão e as minhas duas irmãs fomos acordados, não pelo meu pai ou a minha mãe como era costume, mas por um tio e uma tia. Mandaram-nos vestir um roupão sobre os pijamas e acompanhá-los. Atravessámos a curta distância que separava da casa do meu avô materno a casa onde vivíamos, e à qual nunca mais voltei. Durante semanas só nos disseram coisas vagas. As empregadas do meu avô calavam-se de repente quando passávamos. Soubemos depois que a família não tinha a certeza que o meu pai sobrevivesse aos ferimentos de bala que sofrera no ataque ao quartel de Beja na madrugada daquele dia 1. A minha mãe estava presa. Voltou para casa um ano e meio depois. Ele, ao fim de seis anos. Lembro-me: a minha mãe, a quem não deixaram abraçar os filhos pequenos, encharcando com lágrimas os punhos cerrados de fúria com que agarrava as grades do parlatório de Caxias. O nosso terror. O meu pai, numa cela da Penitenciária de Lisboa, entubado, magríssimo, a voz quase apagada, um fantasma desvanecido contra a luz da janela, aquele homem que eu recordava grande, alegre, garboso na sua farda. Desapareceu de vez a infatigável alegria do meu irmão, um miúdo palrador e de olhos cheios de luz. Ganhou dificuldades de fala e endureceu. Nunca mais encontrou a paz. Por mim, fui adolescente a querer ser homem sem ter para isso pai. Não foi fácil e não se tornou menos difícil depois. As minhas irmãs, eu sei lá, nunca falamos disso. A família juntou-se para nos acolher e ajudar, houve amigos que estiveram à altura da ocasião, mas vivíamos com alguma dificuldade. Quando a minha mãe foi libertada, tinha perdido a profissão que a PIDE a impediu de retomar. Arranjou os empregos possíveis. Dormia pouquíssimo, trabalhava loucamente e aguentou tudo. Só perdeu a juventude e a saúde.

Quando visitávamos os meus pais em Caxias, em Peniche, encontrámos pessoas que sofreram muito mais que nós e estavam muito mais desamparadas. Especialmente os familiares de militantes do PCP, gente heróica sem bravata. Aprendemos que, para além dos nossos pais e dos que, com eles, foram a Beja (alguns, com menos sorte e resistência física que o meu pai, para lá morrerem), havia em Portugal muitas pessoas rectas que, ao fazerem o que era necessário fazer, causaram danos colaterais como aqueles que a minha família sofreu. Aprendemos que é mesmo assim, que nada se consegue sem danos colaterais. Aprendemos também, todavia, que a maioria das pessoas não suporta esta ideia e quer somente paz e sossego. É a vida, mas felizmente haverá sempre aqueles que são maiores que a vida. Se os não houvera, a iniquidade venceria necessariamente.

Coincide com os 50 anos da Revolta de Beja a perseguição movida pelo regime que hoje vigora em Portugal contra Otelo Saraiva de Carvalho, o operacional responsável pela revolta seguinte, o 25 de Abril de 1974. Que isso não nos impeça de dizer e fazer o que é necessário. A iniquidade não pode vencer.»
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2 comments:

Niet disse...

O assalto ao Quartel de Beja teve três programadores excelentes: Humberto Delgado, o Major Varela Gomes e Manuel Serra. Que foram apoiados por um escol de jovens milicianos , o irmäo de Hipolito dos Santos e o tenente Pedroso Marques, entre outros. A que se juntaram um punhado de intelectuais de alto nivel,
Piteira Santos, Urbano Tavares Rodrigues,Barradas de Carvalho e Edmundo Pedro, entre outros . Delgado esteve incognito vários dias em Lisboa e a 2 de Janeiro dirigiu-se para os arredores de Beja. Com o insucesso do ataque, conseguiu fugir para Espanha com o seu secretário Adolfo Ayala. A figura intelectual de Varela Gomes sobressai de forma notável e singular no contexto da luta contra a ditadura. Os seus textos politicos possuem uma qualidade invulgar e säo pioneiros com referências estratégicas muito elaboradas a Guevara, Giap,Ho Chi Minh, etc. Niet

J.Carlos disse...

Privei de perto durante alguns anos com o Coronel Varela Gomes,e devido a essa amizade ele partilhou,comigo algumas conversas secretas,como na brincadeira diziamos(por causa do programa do Baptista Bastos).Homem de grande capacidade de liderança e honestidade.