«A descida do IVA da electricidade é uma medida razoável para combater a pobreza energética e para restituir no tempo certo o que foi abusivamente extorquido desde há alguns anos. Não é, no entanto, nem a decisão que define o Orçamento, nem menos ainda uma peça na estratégia de combate às alterações climáticas.
A única razão para o excesso de atenção que tem merecido é um equívoco, tão comum nos tempos de informação fulgurante que vivemos: como todos os partidos, excepto o PS, prometeram reverter o que alguns deles tinham determinado (o PSD e o CDS), conformou-se a opinião jornalística, porventura apressada, de que neste capítulo o Parlamento poderia vir a impor a sua vontade à recalcitrância do Governo. Era até improvável que isso acontecesse, dados os condicionalismos que o PSD evoca, gato escaldado da água fria tem medo. Mas a simples sombra de uma derrota alçou os ânimos dos ministros, motivou o falatório e concentrou as atenções de partidos de oposição.
Talvez isso explique os ziguezagues do governo nesta matéria. O primeiro-ministro começou por recusar mexer no IVA e, a 24 de novembro, afirmava que “todos queremos reduzir o custo da eletricidade e temos vindo a fazer uma redução muito significativa, quer com a generalização que foi feita da tarifa social, quer com a redução do défice tarifário, que é a forma estrutural de reduzir o preço da eletricidade”. Assunto resolvido, não se fala mais nisso, o que havia a fazer está feito, a resposta é não.
Poucos dias depois, uma reviravolta e vem uma proposta para a redução do IVA por escalões, a resposta passa a ser talvez. Assim, já em dezembro, entre manter a recusa e procurar um paliativo, o Governo, desta vez assisado, escolheu o segundo caminho, propondo em 2019 o que recusara altivamente em 2018, uma redução do IVA por escalões de consumo, desde que a Comissão Europeia aceite (embora a jurisprudência imponha a recusa). Mesmo que, consoante a graduação dos escalões de referência, o efeito no rendimento das famílias possa ser ou assinalável ou negligenciável, abria-se uma porta de negociação.
Assim, a 10 de dezembro, duas semanas depois da recusa sobranceira, o primeiro-ministro foi ao Parlamento anunciar que tinha “solicitado (a Bruxelas) que sejam alterados os critérios sobre o princípio da estabilidade do IVA de forma a que seja possível variar a taxa do IVA em função dos diferentes escalões de consumo”. A explicação era que isto facilitaria “que o IVA seja também um bom instrumento fiscal de incentivo a um uso mais eficiente da energia e assim, sim, casamos uma boa política fiscal com um objetivo estratégico que tem estar presente em todas as medidas políticas, como seja o combate às alterações climáticas”. Neste último sábado, o primeiro-ministro repetiu a explicação: “Ao contrário dos outros partidos que propuseram uma redução generalizada do IVA aos eleitores, nós entendemos que a redução só deve existir em função dos escalões de consumo porque deve ser um incentivo para um bom desempenho energético e um consumo responsável”.
Ora, se com este passo o Governo estabelecia uma ponte negocial, escolheu o pior dos argumentos, metendo-se numa alhada escusada. Foi António Costa quem evocou, e logo na explicação ao Parlamento e na carta oficial a Bruxelas, que a medida se destinaria ao combate às alterações climáticas. Até escreveu a Ursula von der Leyen que a medida procura “continuar a contribuir, de forma ativa, para o objetivo europeu de neutralidade carbónica”. Mas isso é injustificável (e é errado). Se todo o consumo elétrico paga hoje IVA a 23% e for reduzida a taxa para uma parte (se o IVA diferenciado vier a ser aplicado a 6% e 13% por escalões de consumo), ou para todo (se o IVA baixar generalizadamente), o consumo não diminuirá, só pode aumentar, mesmo que marginalmente (não é de esperar que famílias com rendimentos baixos deixem as luzes da sala ligadas de noite só porque o IVA baixou). O que de certeza não vai acontecer é que uma família que gaste muita eletricidade, agora paga a 23% de IVA, passe a gastar menos, dado que o IVA se tenha reduzido para 6%.
A redução do IVA elétrico, que está agora na taxa máxima, nada tem que ver com o combate às alterações climáticas, é uma medida para evitar a pobreza energética e, se tem um efeito, é um pequeno aumento do consumo. Para reduzir o uso de energias poluentes, há outras medidas indispensáveis, como a antecipação do fecho das centrais termoelétricas, a promoção do transporte público sustentável, a recuperação da ferrovia, a redução do tráfego aéreo, e é por aí que se devem procurar soluções urgentes e com grande impacto. Ou até mesmo, se o governo levasse a sério o que assinou num relatório aprovado no parlamento, o corte nas rendas energéticas.
Aqui estamos portanto num caso em que, porventura condicionado por temer que esta seja a questão mais difícil do Orçamento, o Governo oscilou nas suas posições, desdisse as solenidades do passado recente, adoptou uma proposta que tinha recusado e inverteu o seu argumento, evocando para tanto uma razão que é incompreensível, a redução do consumo de energia que seria induzida por uma baixa das taxas aplicadas ao consumo.
Neste emaranhado, o primeiro-ministro resolveu ainda criticar a sua própria proposta, afirmando no sábado, em jeito de comício que “não podemos andar às 2ª, 4ª e 6ª a dizer que é dia de emergência climática [o que o Governo diz] e às 3ª e 5ª a dizer que as alterações climáticas não importam e que o essencial é a redução do IVA da eletricidade [o que o Governo agora propõe]. Pode ser impopular, mas temos que ser coerentes com as opções estratégicas que assumimos”. Essa opção estratégica que foi assumida é que é mais misteriosa, pelo menos porque tem dias.»
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