«Duas “pestes” percorrem o mundo: a epidemia do coronavírus e o racismo antichinês. Das duas, esta é que mais contagia. É um efeito comum das “pestes”. Há um fantasma adormecido na nossa memória histórica e que, de vez em quando, desperta. A grande dúvida é saber se a epidemia se mantém como crise sanitária internacional (ainda não foi declarada pandemia pela OMS) ou se vai transformar-se num fenómeno geopolítico, susceptível de alterar os equilíbrios do sistema internacional. O coronavírus surge com um “cisne negro”, acontecimento imprevisível e raro que, combinando-se com outros factores, pode dar lugar a inconcebíveis mudanças.
Tudo depende da expansão ou contenção da epidemia ¬ e dos seus efeitos na nossa vida quotidiana ou no comércio internacional. A epidemia revela, uma vez mais, quanto a China depende do comércio internacional e a economia mundial depende da saúde da China. A Administração Trump parece regozijar-se. O secretário do Comércio, Wilbur Ross, anunciou “o regresso dos empregos” à América. Mas, se China apanhar uma pneumonia, o resto do mundo poderá ter de entrar nos cuidados intensivos.
Comecemos por uma história. Morreu na quarta-feira o dr. Li Wenliang, o médico que alertou os colegas e o governo para a gravidade da epidemia e foi punido por “espalhar rumores”. Foi há dias “reabilitado” e promovido a herói. Foi infectado ao tratar doentes. A epidemia passa a ter um rosto. Um rosto incómodo, e talvez perigoso, para Pequim.
Observa Stephen McDonnel, correspondente da BBC em Pequim: “A morte do dr. Li foi um momento de comoção para este país. Para a liderança chinesa é um épico desastre político. Ele expõe os piores aspectos da direcção chinesa e do sistema de controlo da governação sob Xi Jinping – e do Partido Comunista, que foram cegos ao nada ver. (…) Agora, os spin doctors e os censores tentarão uma maneira de convencer 1,4 mil milhões de pessoas, para quem a morte do dr. Li é um claro exemplo da inaptidão do partido para lidar com uma emergência – quando a transparência pode salvar vidas e o silêncio pode matar.” A transparência chegou com um mês de atraso.
As autoridades estão a perder as batalhas da comunicação, a interior e a exterior. A soberba imagem que a China dava de si mesma está ser corroída por uma desconfiança absoluta, que põe em causa o seu famoso “modelo político-social”, que Xi Jinping tanto se esforçou em vender ao mundo. E, como reflexo do nosso inconsciente imaginário da peste, eclodiu uma vaga de racismo antichinês.
Alibaba
Os primeiros efeitos económicos são preocupantes. Uma vez mais, tudo dependerá da duração da epidemia. Alguns falam no risco de recessão global. Mas ninguém é capaz de prever, honestamente, as consequências económicas da epidemia.
O tráfego aéreo foi altamente afectado. No estrangeiro há fábricas que param por falta de sobressalentes vindos da China. Parte das fábricas chinesas tiveram de parar. Gigantes estrangeiros como a Foxconn, principal fornecedor de componentes electrónicas do mundo, a Nissan, a Peugeot, a Renault ou a Tesla suspenderam a laboração. É uma faca de dois gumes. “Os que apostavam tudo na China vão ter de rever os seus cálculos, se suspeitarem que a potência chinesa não é tão sólida quanto Pequim gosta de mostrar”, declara a sinóloga francesa Valérie Niquet.
A economia chinesa é hoje mais vulnerável do que durante a crise do SARS, em 2002, dizem os analistas. “Tínhamos a expectativa de uma rápida desaceleração do crescimento no primeiro trimestre de 2020, e de uma gradual estabilização no resto do ano”, diz uma analista do banco Natixis. Hoje, tudo é incógnito.
Ridvan Bari Urcosta, da agência Geopolitical Futures, resume o drama com o caso da Alibaba, a maior empresa e o maior “vendedor” do mundo. “Enquanto case study, a Alibaba Group Holding Ltd é um claro exemplo de como o vírus já está a ferir a economia chinesa. Alibaba é o símbolo da China contemporânea enquanto superpotência; o seu nome é sinónimo do poderio económico da China. Desgraçadamente para a Alibaba, o coronavírus atinge agora o coração da sua identidade. Em quase todos os países há história de cidadãos com medo de produtos vindos da China – incluindo os da mais famosa companhia chinesa, o Grupo Alibaba. Como resultado, entre 13 e 28 de Janeiro, as acções caíram de 231 para 203 dólares.”
Outro indicador: “Todo o sucesso da China em atrair talentos estrangeiros na última década poderá ser arruinado pela expansão do vírus mortal.” Também a queda do turismo é vertical.
Ao contrário do terramoto do Sichuan em 2008, a China não recebe mostras de solidariedade. Recebe acusações. Os seus diplomatas protestam contra o isolamento do país mas pouco conseguem fazer. Mesmo “amigos” asiáticos, como o Cazaquistão e as Filipinas, que participam na Nova Rota da Seda, fecham as fronteiras aos chineses. O mesmo faz a Rússia de Vladimir Putin que, além de fechar as portas, se recusará a tratar os infectados cuja deportação, consta, será automática. Ao contrário, o Paquistão e o Camboja reforçaram as ligações aéreas com a China.
Xi Jinping
J. Stephen Morrison, vice-presidente do Center for Strategic and International Studies (CSIS), relativiza o risco de pandemia. “Uma pandemia global ocorreria se houvesse surtos explosivos e incontroláveis – como se viu na província de Hubei – noutras partes da China que ateariam surtos no exterior da China. (…) O risco é muito baixo para os Estados Unidos e outras economias avançadas e para países como a Tailândia que têm uma capacidade relativamente forte para lidar com surtos de doenças infecciosas. Se, no entanto, os surtos atingissem centros como Pequim ou Xangai, ou se fossem exportados para países de África, haveria o risco de pandemia global. Não estamos hoje perante tal cenário, mas ele não é inconcebível.”
Num cenário extremo – escreve Urcosta – a China seria forçada a entrar em “hibernação” económica e proceder a uma retirada temporária da política mundial. Nada autoriza a evocar este cenário. Um retraimento geopolítico da China teria consequências inimagináveis no equilíbrio das potências. Mas é ocioso especular sobre factos que “não aconteceram”. Outra coisa é prever um relativo enfraquecimento de Pequim a médio prazo.
E Xi Jinping? Bill Emmott, antigo director da Economist, não é optimista quanto ao futuro do líder chinês. “Durante os seus oito anos no poder, o Presidente Xi fez muitos inimigos, que provavelmente vão tirar partido da sua actual fraqueza. Quanto pior for a crise do coronavírus, mais rápido será o enfraquecimento e até, talvez, a sua destituição.” O sinólogo americano Minxin Pei pensa o contrário: “Quando os líderes chineses proclamarem a vitória sobre o vírus, eles agradecerão ao partido comunista e ao seu líder, Xi Jinping. A verdade é o inverso: o partido comunista é o primeiro responsável por esta calamidade.”
A peste racista
O fantasma da peste é o fenómeno que melhor representa o medo de ser tocado pelo outro. O desconhecido é a ameaça de contágio. O medo é um poderoso factor de “pandemia racista”. Produz uma reacção paranóica, que facilmente se torna irracional: o medo não é apenas o de ser infectado “por um chinês” mas alarga-se ao medo dos próprios produtos chineses.
As pestes são um “flagelo do passado”. A peste bubónica flagelou a Europa, a Ásia e o Norte de África durante séculos. No seu maior surto, em cinco anos (1347-1352), a “peste negra” dizimou entre 30 e 50% da população europeia – mais de 25 milhões de vítimas – e terá matado mais de cem milhões no conjunto da Eurásia. Foi uma ameaça até ao século XVIII. Hoje, a peste já não se manifesta nas epidemias devastadores que marcaram a História e a memória colectiva dos homens, com drásticos efeitos demográficos, sociais, económicos. E também mentais. O bacilo nunca foi erradicado e a doença continua a afectar alguns milhões de pessoas - por exemplo, em Madagáscar.
A palavra peste e seus derivados permanecem vivos no nosso vocabulário: “Os turistas chineses são tratados na Itália como pestíferos”, escreve um jornal. Mas a palavra tem outros sentidos. Chamou-se ao nazismo “a peste castanha”. E falamos também, com propriedade, de “peste racista”. O medo do coronavírus leva alguns académicos chineses a falar em “epidemia racista” e outros falam já em “pandemia racista”, informa o South China Morning Post.
O racismo antichinês começa na Ásia e, em particular, no Sueste Asiático. Ressurgem velhos ressentimentos antichineses. Na Coreia do Sul, há manifestações de rua a exigir a proibição de entrada de chineses. Em Manila, o crematório recusou incinerar o cadáver de um chinês morto com o vírus. No Vietname, cabeleireiros e manicures afixam avisos: “Chinesas não podem entrar por causa do coronavírus. Obrigada pela compreensão.”
A Itália, o único país do G-7 a aderir à Rota da Seda, está na primeira linha do racismo europeu. Chineses ou simples asiáticos são insultados na rua. Uma italiana de origem vietnamita tem medo de andar no metro por receio de tossir. Na Hungria, comerciantes vietnamitas afixam cartazes a explicar que não são chineses. A deliciosa Dinamarca volta à carga com mais cartoons, desenhando uma bandeira chinesa em que as estrelas são substituídas pela imagem do vírus. Alguns jornais europeus usam deliberadamente o termo “vírus chinês”. Um jornal regional francês, Le Courrier Picard, prefere “vírus amarelo”. Em resposta, os asiáticos de França lançaram o hashtag #Jenesuispasunvirus (Eu não sou um vírus).
Los Angeles Times seriava há dias uma lista de provocações racistas nos Estados Unidos e Canadá: desde falsos anúncios de contaminações, para criar pânico, a lojas e restaurantes que se recusam a servir asiáticos, não necessariamente chineses. Lembre-se que algo de semelhante aconteceu a mexicano e latinos quando do surto de febre suína em 2009.
Deixo para o fim o inefável Matteo Salvini. Criticou a xenofobia antichinesa: para a Itália o risco de contágio vem dos negros. O perigo está nos imigrantes de África, “onde trabalham milhares de chineses.”
Uma coisa é certa. Se a China ultrapassar a crise da epidemia, não é de estranhar que a resposta seja um surto de nacionalismo virulento.
Camus
Albert Camus publicou em 1947 um notável romance, La Peste (A Peste, Livros do Brasil). Narra uma epidemia de peste bubónica na cidade de Orão, Argélia, nos anos 1930. É uma alegoria sobre uma outra peste: a nazi.
O romance termina com o fim da tragédia. “Com efeito, ao ouvir os gritos de alegria que subiam da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e que se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”»
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2 comments:
Quem tem receio de ser infetado é racista? E o autor do texto não é?
Quem tem medos disparatados pode ser simplesmente estúpido.
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