«Estamos ainda no princípio da pandemia, com o número de infectados a crescer exponencialmente, mas disputa-se já o futuro. A crise sanitária não atenua a rivalidade das potências, antes parece exacerbá-las. Está em curso uma “guerra sanitária” entre os Estados Unidos e a China, enquanto a Europa parece paralisada. Não é só a luta pela sobrevivência, é uma disputa pela liderança mundial na era pós-coronavírus. Há movimentações e debates em várias frentes. América, China e Europa lutam por defender os seus interesses ou para tentar alargar as suas esferas de influência. A Itália é hoje um desses “campos de batalha”. Para muitos analistas, a Itália será a chave da Europa.
Logo após o fracasso do Conselho Europeu de quinta-feira, multiplicaram-se na Weibo, a versão chinesa do Twitter, os apelos a que Roma mude de campo: “É altura de a Itália deixar o G7 e se juntar à China.” A agência Xinhua anuncia triunfalmente que a China já enviou ajuda sanitária a 89 países.
Depois de ter encoberto a epidemia em Wuhan e de se ver no “banco dos réus”, o regime chinês está a recuperar a sua imagem no exterior. “O país demonstrou a sua capacidade para enfrentar um dos novos e mais difíceis desafios sanitários do mundo global”, escreveu o El País em editorial. O Presidente da Sérvia “agradece à China que nos salva”.
A beatificação de Pequim
Em dois meses, muitos italianos passaram de amaldiçoar os chineses e dos insultos e agressões racistas para uma atitude de celebração da “gloriosa China”. Não é uma reacção maciça mas é significativa. Na Itália há um poderoso lobby pró-Pequim. A ajuda sanitária chinesa merece um largo destaque nos media italianos. “Estamos a perder as referências internacionais e tudo se torna numa onda que sobe e desce”, declara Vittorio Emanuele Parsi, professor de Relações Internacionais. “A Itália tornou-se num terreno fértil para as narrativas da Rússia e da China.”
Pequim está a apagar, através uma enérgica campanha de propaganda, interna e externa, o seu fracasso e a responsabilidade na transformação de um surto viral numa pandemia global. Ignoramos o que se passa por trás dos bastidores do Partido Comunista Chinês. O PCC celebra já a sua vitória sobre o vírus. No entanto, a expulsão de correspondentes de jornais americanos é um sinal de fraqueza.
A estratégia americana começou por acusar a China e o “vírus chinês”. Trump recusou assumir a liderança da resposta internacional ao vírus, como os EUA fizeram antes nos casos da SARS ou do ébola. Em contraponto, Pequim adoptou uma estratégia mais fina, apresentando-se como campeã do multipolarismo e da cooperação internacional contra a pandemia.
Observa o comentador Carmelo Palma: “Os êxitos do contágio político cultural da covid-19 levaram, pelo menos na Itália, à beatificação do regime de Pequim e à implícita, ou até declarada, confiança na superior eficácia da não-democracia na gestão das emergências sanitárias ou das emergências em geral. (…) De certa forma, o coronavírus está a completar o trabalho de demolição da hegemonia cultural da democracia, já duramente atingida por duas décadas de declínio económico e de loucura política, populista e soberanista.”
Corre entretanto, na mesma Itália, um debate sobre a “restrição das liberdades”, como efeito perverso da emergência antivírus. É um “debate absurdo”, responde o escritor Michele Serra. “É óbvio que neste período, e não se sabe por quanto tempo, estamos todos sujeitos a drásticas limitações da liberdade individual. (…) Todos perdem alguma coisa, mas em proveito de todos, da comunidade.”
Há um velho princípio do Direito Romano: Salus populi suprema lex - A salvação do povo é a lei suprema. É a lógica da emergência na Itália ou em Portugal.
A distopia chinesa
Para lá da dimensão geopolítica, a pandemia suscita uma segunda e, talvez, mais importante questão: em que sociedade queremos viver?
Num artigo publicado no El País, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, que ensina na Alemanha, argumenta que o coronavírus está a pôr à prova o nosso sistema. Países asiáticos, como Taiwan, Coreia, Singapura ou Japão estão a responder eficazmente à pandemia, enquanto a Europa dá mostras de a não conseguir controlar.
Evoca algumas razões: “uma mentalidade autoritária, que vem da sua tradição cultural”; as pessoas “são mais obedientes do que na Europa” e “confiam mais no Estado”; na Ásia “impera o colectivismo e não há um individualismo acentuado”. E, sobretudo, “para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital”.
O caso da China não tem comparação com os vizinhos. Pequim elevou à máxima potência os meios digitais de controlo social. Não estão em causa apenas os 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas dispondo de técnicas de reconhecimento facial. Vale a pena ler o que Han escreve sobre o sistema de controlo social que a China introduziu e que é inimaginável aos nossos olhos dos europeus.
“Cada cidadão deve ser avaliado pela sua conduta social. Na China, não há nenhum momento da vida quotidiana que não esteja submetido a observação. Controla-se cada clic, cada compra, cada contacto, cada actividade nas redes sociais. Quem passa um semáforo vermelho, quem tem relações com críticos do regime ou põe comentários críticos nas redes sociais perde pontos. (…) Ao contrário, quem compra na Internet alimentos saudáveis ou lê periódicos afins ao regime, recebe pontos. Quem tem pontos suficientes obtém um visto de viagem ou créditos baratos. Quem desce abaixo de um determinado número de pontos pode perder o trabalho. Esta vigilância social é possível porque há um irrestrito intercâmbio de dados entre os fornecedores da Internet, dos telemóveis e as autoridades” (El País, 21.3.20).
Este sistema é particularmente eficaz no combate à epidemia. “Quando alguém sai da estação de Pequim é imediatamente captado por uma câmara que mede a temperatura corporal. Se a temperatura for preocupante todas as pessoas que iam sentadas na mesma carruagem recebem uma notificação nos seus telemóveis. O sistema sabe quem ia na carruagem.”
Esta longa citação serve apenas para frisar a distância entre a nossa emergência e a deles. Quanto à maior eficácia dos sistemas autoritários, podemos também devolver a interrogação: numa cidade ocidental, teria sido possível silenciar um surto do coronavírus como de Wuhan?
Fica a interrogação: em que modelo de sociedade desejamos viver?»
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1 comments:
Porque não deixar a China em Paz?
Que ideia é esta de bater, agora, numa Nação,que como as outras,tem pontos fracos?
Não se conhece país invadido por ela,nenhuma tentativa organizada para construir e dirigir a Organização do Tratado do Pacífico Norte ... para ir combater na América do Sul!
Quem mantém um bloqueio a um pequeno país vizinho há 60 (sessenta) anos, não inspira mais receio?
A saúde do povo é ou não é a suprema lei ? A democracia não engloba essa máxima?
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