«Ela entra devagar no azul excessivo da água da piscina, quer libertar-se daquela sensação de absurdo nascida desde o início da pandemia, um pouco como as personagens no filme de Wim Wenders “Movimento em Falso”, em que o desejo de libertação do desânimo persegue as deambulações de Wilhelm e do seu grupo. Wilhelm, um escritor falhado que não gosta de pessoas, com um velho atleta dos jogos olímpicos de 1936 atormentado pelo seu passado nazi, uma acrobata de circo muda, um poeta desajeitado, uma atriz, um grupo perdido em deambulações sem rumo, onde o sonho e a realidade se misturam, a paixão, o suicídio, a perda do passado, viajando através de lugares enigmáticos de uma Alemanha traumatizada no pós-guerra.
O azul da água, a ortodoxia da purificação, o incómodo do corpo, fecha os olhos para ver melhor a realidade como dizia Wilhelm no filme, há peste nas periferias de Lisboa. A parábola da cidade esgotada pela especulação imobiliária, pelo turismo massificado, pela corrupção urbanística, que expulsou para a periferia os pobres, os trabalhadores precários e a recibo verde, os migrantes, a classe média falida na crise de 2008. Os bairros problemáticos, uma realidade bem conhecida dela do tempo em que estava no DIAP de Lisboa e na Distrital de Lisboa, bem conhecida da polícia.
A contraditória criminalização do combate à epidemia, as multas, a ameaça de punição com os crimes de desobediência e de propagação de doença contagiosa, são apenas o sintoma de um velho aparelho de Estado paralisado pelo nepotismo e burocracia, incapaz de funcionar e de se ligar à comunidade. Afinal o mesmo fenómeno revelado durante os incêndios de 2017, refugiando-se nos bodes expiatórios dos incendiários, que são agora os superinfetadores, os mal-comportados.
O cenário dos transportes públicos em hora de ponta é a imagem gritante da impotência. Mandam as pessoas para casa em bairros problemáticos de casas degradadas e inabitáveis, com multidões que têm que sair para sobreviver em trabalhos clandestinos. Multar e perseguir os desempregados, vagabundos da crise, deixar os alunos na rua porque as escolas não têm condições, espalhar o pânico doentio. Ignora-se o resultado de três meses de paragem dos tribunais, a desigualdade social é uma chaga, e um SNS desprezado pelos sucessivos governos é agora a medida de todas as liberdades. Agora como dantes, as ARS (administrações regionais de saúde), a DGS, o Ministério da Saúde compõem estruturas burocráticas sobrepostas e insensíveis, juntamente com a proteção civil e a segurança social, incapazes de ligação ao terreno, aos diretores dos hospitais como ponto de partida para uma ação eficaz. Criminalizar o combate à epidemia é querer parar o vento com as mãos.
O absurdo não se dissolve no azul da água, há uma culpa difusa neste clima de delação, até na inexplicável dificuldade em ter um corpo. Os efeitos do buraco negro criado com a economia parada, com a incompetência institucional, vão obrigar-nos ao maior combate das nossas vidas. Em cada facto novo há um movimento em falso.»
.
1 comments:
É uma análise perfeita da nossa desgraça, lá os tribunais é que é o menos.
Enviar um comentário