«No debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento nas escolas verificou-se uma estranha ausência: os direitos das crianças. O direito à vida, ao amor, ao ensino, à saúde, a um ambiente lúdico, à proteção contra o trabalho infantil, a um planeta com futuro. A objeção de consciência foi avançada como um direito inalienável dos pais. Como pai de um filho e uma filha adolescentes, devo dizer que me preocupam muito mais os meus deveres do que os meus direitos. Dever de respeitar os direitos dos meus filhos, que precisam ser rodeados de amor e carinho desde o nascimento, base de confiança para a vida. Dever de lhes garantir uma educação favorável ao desenvolvimento como seres humanos livres, conscientes, ativos e solidários, capazes de fazer escolhas pelas suas próprias cabeças, num ambiente estimulante e descontraído de descoberta dos outros e de si próprios.
Li afirmações extraordinárias sobre o totalitarismo do Estado e das escolas, como se as pessoas vivessem na Coreia do Norte. Está a enraizar-se a ideia que tudo são opiniões, não existe escrutínio e passa-se rapidamente ao insulto como forma de fazer valer essas opiniões, sinal da ausência de razão. Pergunto-me se alguns dos participantes desses debates leram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, se refletiram sobre direitos e deveres, ou mesmo sobre a objeção de consciência, na origem um movimento pacifista, de recusa de envolvimento em ações militares, iniciado por motivos religiosos durante o império romano e alargado a várias formas de consciência cívica e política ao longo dos séculos.
O caso mais radical de objeção de consciência que eu conheço foi narrado por Tara Westover em Uma educação, autobiografia publicada em 2018. Numa família de sete filhos, o pai, mormon radical de extrema-direita, criacionista e racista, recusara todas as instituições do Estado, incluindo escolas e hospitais, pois seriam controladas pelos “socialistas californianos” e pelos “illuminati”. Os filhos não possuíam certificado de nascimento, não eram escolarizados, nunca tomavam medicamentos ou frequentavam o hospital. Passaram a infância a trabalhar nas obras de construção do pai, sofrendo lesões sem tratamento. Viviam numa casa sem higiene, lavar as mãos não fazia parte das normas, com um irmão vítima de lesão cerebral em acidente de trabalho, nunca tratada, que batia regularmente nas irmãs mais novas para as “manter na linha”, os pais achavam bem. Quando Tara Westover, já adolescente, decidiu libertar-se daquele ambiente opressivo e foi para a escola, descobriu a vastidão da sua ignorância, não tinha o mínimo de cultura ou de conhecimento científico. Felizmente era extremamente inteligente e conseguiu fazer um percurso educativo exemplar, à custa de um enorme esforço, mas é evidente, nas últimas páginas, que o traumatismo de infância ficou enraizado.
Li um artigo em defesa da neutralidade da escola, alheia a quaisquer valores, ironia das ironias escrito por um sociólogo, António Barreto. Tal coisa é uma fábula, qualquer programa de ensino reflete os valores da sociedade onde se insere, o nível tecnológico, as ideias mais recentes sobre ciência. Mais, as crianças não são uma tábua rasa. Será melhor deixá-las expostas às perversidades do “dark web” no isolamento dos seus quartos? Li também que a cidadania é subjetiva, enquanto os conhecimentos de história e de ciência são objetivos. Não precisamos de ler o Bruno Latour para saber que os conhecimentos estão em permanente evolução, a ciência de hoje é distinta do que era há cinquenta anos e do que será dentro de cinquenta anos, já para não falarmos de história, cujo conhecimento do passado varia com os constrangimentos do presente e o ângulo de abordagem. Li de novo as linhas de orientação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, confirmei a minha ideia inicial, o programa é extremamente moderado, deveria abordar de forma mais clara o problema do racismo, que bloqueia qualquer sociedade, manifestamente contrário ao universalismo de igrejas monoteístas e à noção básica de igualdade perante a lei. Sei que o racismo foi retirado do programa escolar do 10.º ano há uns anos, deveria ser reintroduzido, pois a norma antirracista é a pedra angular de qualquer sociedade democrática.
Vivo em Inglaterra e talvez seja útil comparar experiências educativas, pois vim para aqui quando os meus filhos tinham um e dois anos de idade, tendo passado por escolas privadas e do Estado com programas semelhantes. A educação cívica começou nos primeiros anos da escola primária com sessões sobre a violência doméstica. Ficaram a saber que é um crime os pais baterem nos filhos, que formas de abuso dentro de casa são inaceitáveis. Os professores divulgaram o número da linha de assistência às crianças. Isto deve escandalizar a tirania patriarcal arcaica, que considera que ninguém tem a ver com o que se passa dentro de casa e que o pai tem direito a tudo. Não tem, a casa pode e deve ser uma fonte de amor e de harmonia, mas infelizmente pode ser, em casos marginais, uma fonte de abuso que deixa traumatismo para a vida. Não quer isto dizer que os problemas de violência doméstica tenham sido erradicados: há três anos o meu filho chegou a casa profundamente abalado porque estivera a tentar dissuadir um colega suicidário, cujo pai batia sistematicamente na mulher e nos filhos. Nos primeiros anos da escola secundária começaram a ter lições sobre igualdade racial e igualdade de género. Nos anos seguintes, o respeito por opções sexuais alternativas foi igualmente abordado. Entretanto, ficaram a conhecer os órgãos sexuais e as funções de reprodução, tiveram informação básica sobre formas de contraceção, que não colide com opções religiosas nesta matéria, pois informação não é coação. Falaram também na escola das pessoas com problemas físicos e mentais, com direito a tratamento, consideração e apoio. Finalmente, tiveram aulas sobre os fundamentos das diversas religiões do mundo, Judaísmo, Cristianismo, Islão, Budismo, Hinduísmo, Sikhismo. Aprenderam direitos básicos e a respeitar pessoas de diferentes etnias e com diversas opções religiosas e sexuais.
Num momento em que o debate político em Portugal está envenenado pelas diatribes racistas da extrema-direita, não entendo como em lugar de se melhorar radicalmente a oferta de educação cívica se tenta diminui-la. Deve-se debater como pode ser feita da forma mais inteligente e eficaz, mas evitar o assunto não é opção. É evidente o interesse dos abusadores de direitos humanos básicos em evitar escrutínio e ação legal, mas acredito que a vasta maioria da sociedade não faz parte dessa categoria, enquanto os partidos democráticos deveriam compreender o interesse da educação cívica para reforçar os fundamentos da sociedade e estimular o desenvolvimento. Uma população sem conhecimento dos seus direitos e sem ser educada no respeito pelos outros é uma população submissa e atrasada.»
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