«Sobre o aumento de infetados e de óbitos já se escreveu bastante na semana passada. É o que devemos ter em mente o tempo todo, mas não nos dá informação sobre o que se passa agora, desde que entrámos num novo período de confinamento. O debate em que nos concentramos agora é o das medidas de confinamento, cujos efeitos só conheceremos daqui a duas ou três semanas. E a certeza de que não estão a correr como em março e abril do ano passado.
Tinha o confinamento começado há poucas horas e já a imprensa fazia reportagens impressionistas sobre o incumprimento das regras. Na realidade, ainda o confinamento não tinha começado e já se dizia que não ia ser respeitado. Isto funciona como uma profecia autorrealizada. Julgam que ao dizê-lo estão a sensibilizar todos para o cumprimento das normas. Mas se as pessoas acham que ninguém cumpre, não cumprem.
O problema é que as pessoas estão a cumprir menos, banalizando as exceções que usavam com moderação em março, quando havia muitíssimos menos casos. Nem é por haver mais ou menos exceções – a única verdadeiramente relevante é a das escolas, e não foi por causa dela que as pessoas estiveram na rua, no fim de semana. Do meu ponto de vista (e sei que tenho uma posição minoritária), o encerramento para alunos acima dos 12 anos, que é defendido por vários epidemiologistas (como Manuel Carmo Gomes) e recusado por outros (Henrique Barros), só deve acontecer depois de tudo o que não é essencial para a nossa subsistência fechar. Ou se a nova variante o tornar inevitável. Porque os efeitos deste encerramento são de longo prazo e incrivelmente desiguais. Quanto às outras novas exceções, os tribunais abertos terão um efeito marginal na pandemia e ninguém quer voltar a proibir as visitas a reclusos e a lares.
O problema não são as exceções. É o facto de as pessoas não estarem a cumprir as regras como em março. E não as estão a cumprir porque, como os especialistas sabem, depois do susto inicial, tende-se a interiorizar o perigo e a ser mais negligente. Sabe-se que as medidas de confinamento são, com o tempo, cada vez mais difíceis de implementar. É por isso que, quando se ouve os especialistas, não se pode ficar por quem conhece os efeitos do confinamento na epidemia. Tem de se falar com quem conhece, já nem digo os efeitos económicos, sociais e psicológicos, mas as condições para que esse confinamento realmente aconteça.
Da primeira vez estava tudo fresco. Tínhamos mais dinheiro, mais medo e mais espanto. Isso tornou possível confinar um país inteiro quando os números eram muitíssimo inferiores aos atuais. Não gosto de ser apostador de segunda-feira. Até porque, como todos e ainda mais os leigos, já falhei muitas vezes. Mas é possível que tenhamos desperdiçado demasiada energia na altura. Compreende-se. Sabíamos pouco sobre o vírus. Mas recordo que não foram poucos os que defenderam que o confinamento deveria ter sido mais apertado, começado mais cedo e terminado mais tarde. Não preciso de explicar como tudo seria ainda mais difícil neste momento. E que lidaríamos com o mesmíssimo problema.
Estamos muito pior agora e não se sente o mesmo medo. Nem mesmo sabendo que ultrapassámos o resto da Europa. As pessoas, mesmo perante os números assombrosos e imagens que já não vêm de Itália, parecem não reagir. A tentação é fazer o discurso da responsabilidade individual. Ele está moralmente certo, mas é inútil. A vontade de grupo não é uma mera soma de responsabilidades pessoais. Os comportamentos coletivos não são uma mera soma das vontades dos indivíduos. E a psicologia social não se limita a lidar com o comportamento individual. Contam processos de imitação e dinâmicas coletivas. E as condições em que elas se desenvolvem. Talvez faltem, entre os especialistas que os políticos ouvem, cientistas sociais. Sem estes espécimes tão desprezados neste século é impossível liderar um fenómeno desta natureza. Resta o desespero do médico que não compreende como é que a evidência dos números e das imagens não tem efeitos nos comportamentos coletivos.
Ontem, o Governo anunciou algumas novas medidas. Proibição de circulação entre concelhos aos fins de semana, proibição de permanência em jardins e várias mudanças nas regras do comércio. Mas, no essencial, defendeu o endurecimento da coação e maior policialmento (que quase não vejo na rua). Não vai, como é evidente, fechar tudo, como propôs alguém da Ordem dos Médicos, que não pode ter ideia do que isso significaria para o país, para a saúde pública e até para o combate à pandemia. Não ajuda, aliás, os discursos que alguns médicos fizeram em março do ano passado, com um décimo dos infetados. A ponderação no momento certo dá força à dramatização quando ela é realmente necessária – agora.
Não é porque as pessoas sejam irresponsáveis que este endurecimento é necessário e até pode piorar. É porque a responsabilidade coletiva depende de fenómenos coletivos. E a exaustão coletiva é muitíssimo mais difícil de resolver do que a exaustão de cada um de nós.»
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