«Temíamos que viesse a ser assim. E não era um temor catastrofista. Era apenas a leitura atenta dos dados que iam chegando e o conhecimento sério das forças e fraquezas do nosso sistema de resposta. O princípio da precaução – em contextos de risco de intensidade incerta, antecipa o pior cenário e age como se ele fosse o único realista – tinha aconselhado a munirmo-nos de uma bazuca nacional sem ficar à espera da bazuca europeia. Precisamente agora que até os mais ortodoxos de Bruxelas puseram parênteses (temporário, é certo) nas regras estúpidas do défice, tinha sido avisado reforçar em pessoal e em meios o Serviço Nacional de Saúde. Tinha sido avisado alterar leis e procedimentos para proteger o emprego para proteger os desempegados. Avisado, só isso.
Era assim que se devia ter preparado a resposta ao tsunami que lá vinha. Um tsunami feito de mortos e infetados, de falências e de pobreza. Era assim, mas não foi.
Prevaleceu uma mistura de otimismo irritante e de medo de afrontar quem tem poder: o patronato, os grupos privados da saúde e o sistema financeiro. É isso mesmo que fica patente no facto de, nesta semana, o Governo ir resgatar medidas de apoio económico e social que rejeitou no Orçamento de Estado com a justificação de que eram desajustadas ou excessivas.
E fica patente também na falta de meios suficientes do SNS para responder à vaga de internamentos. A dedicação dos profissionais do SNS é heroica, mas a verdade é que temos hoje menos cerca de mil médicos no SNS que em janeiro. Que não tenha havido a determinação para inverter essa sangria, neste tempo em que ela é absolutamente inconcebível, mostra como se admitiu que ia ser possível enfrentar a tempestade perfeita com galochas, gabardine e guarda chuva.
Num momento em que os hospitais do SNS estão em dramático sobre-esforço, e em que o combate à pandemia é uma ingente causa nacional, o temor em operar a requisição civil dos equipamentos privados e sociais – única forma de os incluir neste combate coletivo fora de uma lógica lucrativa – é a expressão maior de um preconceito ideológico que tolhe o que não podia tolher.
Em nome da responsabilidade, tínhamos de ter sido muito mais ousados na preparação das políticas de resposta ao que aí vinha. Em nome da responsabilidade, temos de ser teimosamente exigentes nas políticas para a hecatombe que aí está.»
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