30.4.21

Viver à fome

 


«Se o pobre tivesse silêncio de corrupto, o país indignar-se-ia em alvoroço persistente, haveria debates parlamentares e diretos nas TV, livros brancos, verdes, brancos, haveria planos nacionais e acordos de regime, haveria ação política movida a protesto cívico, mas a mobilização raspa mais vezes a cabeça do fósforo contra as vergonhas do que a favor das convicções. E nisto vergonhas não há. Porque o silêncio do pobre não zanga nem se zanga. O pobre não tem sindicato, partido, nem voz. Como escreveu Raul Brandão, que tirou esse degredo do segredo, os pobres “têm a alma cheia e não sabem falar”. Nem os demais ouvir o seu silêncio.

Eles, os pobres, são dois milhões de nós, mais ou menos centena de milhar conforme a recessão geral. Uma vez por ano, um rácio do INE é notícia do dia à noite já esquecida. Outras vezes, como agora, um estudo arranca um “isto não pode ser!” e depois continua a ser. Os outros oito milhões submergem a consciência nas suas próprias carências, sobretudo se além de não ouvirem o silêncio do pobre não virem a sua invisibilidade. É melhor não sujar o olhar, é melhor ver números, é melhor ver apenas, como também escreveu Brandão, “os pobres que não pedem”.

Agora é o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e só não lê quem não quer. Ler que há pobres com contrato de trabalho, que há pobres com trabalhos precários, que pobres crianças que serão pais de pobres, que há velhos pobres e não os há mais porque há pensões. A raiz não está na preguiça, como os ignorantes gostam de estalar, está nos salários baixos e nas pensões baixas que eles geram. O país lamenta e pede “mais, mas não de mais, se não os gajos não trabalham”. É uma farsa: metade dos pobres trabalha, com contrato ou sem ele. O “vai trabalhar, malandro” é para os privilegiados, para os que deviam trabalhar para acabar com a pobreza dos outros, mas os outros estão longe ou são invisíveis ou silentes e nós deixamos do lado de fora do quarto o aviso “não incomode por favor”. Condoemo-nos mas não é connosco, é com o Governo, e cada Governo culpará o anterior e remeterá o próximo.

No discurso desta semana no Capitólio, Joe Biden anunciou um plano para cortar metade da pobreza infantil nos EUA e associou as medidas ao aumento do salário mínimo. Em Portugal, o aumento do salário mínimo tem efeitos colaterais adversos, como o esmagamento das faixas salariais, mas é das melhores medidas que o Governo tem promovido. Mais, até, do que as medidas avulsas em tempo de pandemia, que transformou todos os ministérios em Ministérios da Segurança Social.

Não basta. Se há coisa que o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra é que um país que não cresce há duas décadas não pode se não fabricar pobres; que o dispositivo de medidas sociais disponíveis (do RSI ao Complemento Social para Idosos) tem de ser revisto, na formatação e condições de acesso; e que os pobres não se queixam nem se revoltam, resignam-se de trabalho em trabalho até serem substituídos pelo futuro da automação e da Inteligência Artificial. Artificialmente inteligentes somos nós se consentirmos este país pobre, desigual, excludente. Com os nossos apoios sociais não se morre de fome, mas com esta economia vive-se de fome. Só a sociedade pode dar voz à boca do pobre, para que a política se mova. Ou então não, ou então voltamos para a semana e falamos do silêncio do corrupto, também é bom tema e sempre cria vergonha.»

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1 comments:

nuno ivo disse...

tantos que descobriram agora via fundação pingo doce o que Bruto da Costa disse há mais de uma década.
agora, quando há dias um entrevistado disse a um jornal não haver agricultura rentável sem escravatura.
agora, quando o país descobriu que se tratam nepaleses em odemira como já se tratam há vários anos.
agora, quando a jerónimo martins anunciou subida dos lucros.