15.5.21

Co-gestão das áreas protegidas: a demagogia e a incompetência de pôr a raposa a guardar o galinheiro



 

«Já aqui há uns dois meses, numa Carta Aberta em Defesa do Estuário do Tejo, um grupo de velhos ambientalistas e académicos apontava também o dedo à anunciada pretensão de entregar a co-gestão dos parques naturais às autarquias. Aí está ela agora, com pompa e circunstância, em jeito de propaganda eleitoral. Poderia pensar-se que o primeiro-ministro, assoberbado primeiro com a luta contra pandemia – que, admite-se, com altos e baixos, apesar de tudo, não tem corrido muito mal – e depois a presidência da UE, que também se desenrola em plano positivo, teria deixado alguns ministérios em roda livre, tais têm sido as asneiras colossais com que nos brindam quase semanalmente. Mas neste caso das políticas fundamentais de médio e longo prazo para a sustentabilidade do território, que são as agro-florestais e as ambientais, António Costa é pessoalmente responsável e não corrige a trajectória. Foi ele, quando era ministro da Administração Interna e com o apoio do ministro da Agricultura de então (um dos piores, se não o pior, ministro da Agricultura que já existiram em Portugal), que deu a primeira machadada nos serviços florestais — os calamitosos fogos florestais que se seguiram, tendo por fim como ex-líbris a destruição do pinhal de Leiria, são a melhor prova do fracasso dessa política. Hoje há menos fogos porque já há muito menos matas para arder, de resto nada mudou na orgânica do Estado nesses domínios.

Quando, há várias décadas, se iniciou a política de conservação como pilar fundamental da política de ambiente, a pedra-de-toque foi a criação da grande Rede Nacional de Áreas Protegidas (AP), como os Parques Naturais e as Reservas Naturais, e a sua orgânica inspirou-se na experiência internacional dessa matéria e também na necessidade de ter um forte sentido pedagógico institucional, pois em Portugal não havia tradição de criar aquelas categorias de gestão do território.

Os grandes parques e as grandes reservas possuíam um director, um conselho geral e uma comissão científica.

O director era escolhido entre técnicos com especial sensibilidade para desempenhar o cargo, independentemente da sua filiação partidária: era o tempo em que, naquela democracia jovem, tudo parecia possível, sério e democrático. Mas quando as comissões concelhias e distritais dos principais partidos passaram a influenciar a escolha do director a favor dos seus boys, começou a ruir a eficácia e a independência das AP. Houve directores de grande categoria, e posso recordar Antunes Dias à frente das reservas naturais do estuário do Tejo e do Sado, Maia Barbosa à frente do Parque da Arrábida, no Alvão e em Montesinho Robert Moura e Dionísio Gonçalves, Maria João Botelho nas serras d’Aire e Candeeiros, Rui Correia em S. Mamede e, na ria Formosa, Fausto Nascimento e Nuno Lecoq.

Mas a grande inovação das AP repousava no seu conselho geral, onde estavam representadas as autarquias (câmaras e juntas de freguesia), os diversos serviços regionais e as ONG: reunia-se regularmente e ali se debatiam os problemas da AP. A pouco e pouco, o seu dinamismo era tal que impressionou e criou ciúmes ao poder central; houve então um secretário de Estado que afirmou que “os parques tinham força a mais” — queria dizer que se decidiam muitas intervenções e assumiam-se compromissos sobretudo com a participação activa das autarquias e das populações, sem o “beneplácito régio”. Então, vieram uns “iluminados” dum Governo socialista e acabaram com aquela orgânica, instituindo a que, degradando-se ano após ano, chegou aos nossos dias.

O PS nunca foi um partido ambientalista e isso é estranho, porque a esquerda democrática é por natureza internacionalista e ecologista — como se vê na Europa. Tirando o professor Gomes Guerreiro, que era uma personalidade de excepção, alguém se lembra de responsáveis socialistas do Ambiente que tivessem deixado nome? E alguns podiam tê-lo feito, recordo Gomes Fernandes ou Humberto Rosa que, se tivessem encontrado outro suporte político e outra ambição dos seus governos, teriam deixado obra que se visse. As pessoas ligadas ao Ambiente recordam Gonçalo Ribeiro Telles, claro, Augusto Ferreira do Amaral, Francisco Sousa Tavares e, sem dúvida, Carlos Pimenta ou Macário Correia – lamentavelmente, do PS nem um!

Uma das decisivas motivações que os parques naturais exerciam junto das autarquias foi sempre explicar que o nome de “parque” não significava território especial para recreio. O recreio seria apenas recreio na Natureza, contido e respeitador.

Esta atitude do actual Ministério do Ambiente, onde declarada e ufanamente não há convicções ambientalistas, de entregar a co-gestão dos parques naturais às autarquias, com a concordância do primeiro-ministro, é uma atitude antes de mais demagógica, um lavar de mãos, uma desculpa pelo abandono a que as áreas protegidas têm estado sujeitas e será o princípio do descalabro do Sistema Nacional das Áreas Protegidas. Uma coisa era o que existia no antigo conselho geral, onde as autarquias estavam enquadradas pelas directrizes e limitações da política nacional de Ambiente, veiculadas pelo director, outra bem diferente é este progressivo aligeirar de responsabilidades.

Com a falta de credibilidade do Ministério do Ambiente em termos de garantia da sustentabilidade ambiental, para além de muita retórica e de distribuição de milhões de euros em todas as direcções (que calam muita contestação…), o descalabro do Sistema Nacional das Áreas Protegidas ai está: os parques e as reservas vivem hoje apenas do prestígio e dedicação de alguns técnicos que lá trabalham; mas, agora, dar a co-gestão dos parques às autarquias, onde sempre a pressão turística foi muito forte, é uma decisão lamentável. Eu e muitos ambientalistas sempre fomos municipalistas convictos, porque a autarquia local é historicamente a melhor e mais democrática base de gestão do território. Mas há leis e políticas nacionais, como as do Ambiente e Ordenamento do Território, que não devem ser municipalizadas, porque a Natureza não se rege por fronteiras administrativas. Este e outros governos anteriores não são capazes de entender… ou não lhes interessa. Tem de se envolver as autarquias e integrá-las na gestão das AP, como foi pensado desde o início, mas a direcção terá de ser especializada. E do Governo não há sinais de dar… a mão à palmatória. Empurra-se com a barriga para a frente…

Penso que só haveria uma solução: refazer a orgânica do Governo nas áreas fundamentais para a sustentabilidade do espaço biofísico — reconstruir um Ministério da Agricultura e Florestas que seja capaz de gerir globalmente a velha máxima romana do ager/saltus/silva; e um Ministério do Ambiente com gente de convicções e menos retórica, que encare as AP e, em especial, os parques e reservas naturais como “jóias da coroa”; parar esta asneira (depois de feita é difícil…) e repor as figuras do director e do conselho geral. Devido à ausência, durante anos e anos, dos apoios necessários para a concretização duma política de conservação, as AP entraram em descrédito; e agora pioram, ao atirar-se para as autarquias locais (que felizmente já têm muito com que se ocupar) a gestão desses territórios tão sensíveis, com a apetência para o recreio e o “turismo de Natureza” que deviam continuar sob rigoroso controle público do Estado, mas afastadas as actividades recreativas comerciais; esta decisão é não só demagogia, incompetência, como alguém já disse — é mesmo pôr a raposa a guardar o galinheiro —, e pode significar o fim do Sistema Nacional de Áreas Protegidas.

Perante a inércia do país, o estado a que chegámos!...»

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