20.5.21

O “incidente de Ceuta” e a vulnerabilidade da Europa

 


«A massa dos 8000 migrantes que atravessaram a fronteira espanhola de Ceuta é uma manobra de pressão sobre a Espanha e a Europa, pondo a nu a vulnerabilidade da sua política de fronteiras. Abre, disse o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, uma “grave crise para a Espanha e para a Europa”. A ameaça migratória encobre neste caso uma manobra estratégica de Rabat.

A UE acordou com Marrocos uma política análoga à que estabeleceu com a Turquia há cinco anos: Ancara recebe avultados fundos em troca de servir de tampão aos milhões de refugiados no seu território e regiões vizinhas. Também Marrocos é um indispensável parceiro da Europa, e em especial da Espanha, no controlo dos fluxos migratórios e no âmbito da luta antiterrorismo.

O episódio de Ceuta surpreendeu Madrid e Bruxelas, porque confiavam na eficácia do dinheiro. Rabat recebe uma generosa assistência financeira para assegurar o fecho das fronteiras. Por que pôr em causa o vantajoso entendimento existente? Porque Rabat sabe que os europeus continuarão a precisar do tampão marroquino. O “incidente de Ceuta” revela outra coisa: os acordos deste tipo podem tornar-se numa perigosa arma de pressão política. Se os europeus contrariam os seus desígnios estratégicos, Marrocos ameaçará “abrir as comportas”. A mesma arma de pressão, ou chantagem, tem sido habilmente usada pela Turquia.

A questão do Sara

A manobra marroquina tem como pano de fundo o conflito do Sara Ocidental. O chefe da Frente Polisário, Brahim Gali, está hospitalizado em Espanha a ser tratado da covid-19. Foi uma decisão do governo espanhol: Madrid não apoia a Frente Polisário mas também não subscreve a política marroquina.

Em fins de Abril, Rabat suspendeu subitamente as patrulhas policiais e milhares de pessoas começaram a concentrar-se perto da linha fronteiriça perante a passividade das autoridades. Era um convite aberto ao “salto da fronteira”. A embaixadora de Marrocos em Madrid foi chamada a consultas em Rabat, deixando um sibilino aviso a propósito do caso Gali: “Há actos políticos que têm consequências que se devem assumir.”

Para lá da Espanha, Rabat quer pressionar a Europa. Em breve o Tribunal de Justiça da UE se deverá pronunciar sobre os recursos interpostos pelos advogados da Frente Polisário contra os acordos de pesca de 2019 entre Marrocos e a Comissão Europeia. A Frente pede a sua anulação por incluírem extensões da costa do Sara Ocidental. Uma sentença do mesmo tribunal, de 2016, considerou que Marrocos e o Sara Ocidental são entidades distintas.

O significado do “incidente de Ceuta” é puramente político. Não significa uma ameaça económica ou demográfica para a Espanha. De resto, os migrantes adultos (não os menores) estão a ser devolvidos a Marrocos, ao abrigo dos acordos entre os dois países.

“A entrada irregular em Ceuta de mais de 8000 pessoas, em poucas horas, não é uma crise migratória, mas um inaceitável desafio estratégico que Marrocos lança à Espanha”, escreve El País em editorial. Acrescenta no Politico.eu o jornalista Sam Edwards: “Agora, que a mensagem foi enviada, as tensões entre Rabat e Madrid deverão baixar, mas o incidente revela a fragilidade da dependência da Europa perante Marrocos.”

A atenção da Europa está centrada na pandemia. Mas a questão migratória vai reacender-se. A Itália já sente os primeiros sintomas. A UE continuará a depender de acordos com os países mediterrânicos e acaba de descobrir que são uma arma de dois gumes.»

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