«Há uma reflexão a fazer: no último ano, marcado por uma gestão da pandemia exigente e de contornos desconhecidos, alguns dos momentos em que o Governo enfrentou maiores dificuldades estão relacionados com a relação com o mundo do futebol. Dificuldades para a política que não se limitaram ao Executivo.
Foi assim no ano passado, aquando da realização da fase final da Champions em Lisboa, apresentada como prémio para os profissionais de saú¬de, com a devida guarda de honra das principais figuras da República. Depois disso, com o laxismo nas celebrações do título do Sporting e, de novo, com a autorização à última hora da final da Champions, desta feita com público, no Porto. Pelo caminho, foi com justificada estupefação que se assistiu ao apoio de vários responsáveis políticos a Luís Filipe Vieira nas eleições do Benfica — do primeiro-ministro aos presidentes de câmara de Lisboa e do Seixal, passando por diversos deputados — ou à eleição dos autarcas do Porto e Gaia, em gritante conflito de interesses, para os órgãos sociais do FC Porto. A pairar sobre tudo persiste uma reverência para lá do razoável do poder político face a tudo o que envolve a Seleção.
Não me chocaria que o poder político se imiscuísse no futebol, designadamente para ajudar a mudar estruturalmente as suas práticas de governação e contrariar a opacidade dos negócios. Seria, aliás, uma forma de proteger a dimensão associativa e de grande mobilização social que também caracteriza o dirigismo desportivo. Em lugar de alguma proatividade para a mudança, os políticos escolheram fazer vénias contínuas aos dirigentes do futebol. Com custos para a política.
Agora que a procissão judicial ainda vai no adro, é oportuno refletir sobre o caráter instrumental do mundo do futebol para a articulação de várias esferas de poder. Trata-se, afinal, de um universo no qual circulam com agilidade montantes financeiros muito significativos, em negócios em que é fácil, sem justificação razoável, ir acrescentando comissões e intermediários, sempre nas margens da legalidade, com apoios fundamentais de paraísos fiscais. Tudo devidamente oleado por uma cultura de escrutínio débil e por clubes com práticas institucionais frágeis. Não surpreende, por isso, que para o futebol tenha convergido essa categoria muito portuguesa que são os empresários sem empresas e sem capital e que no desporto-rei se entrecruzem relações sociais de favorecimento a partir da banca, com ramificações no imobiliário.
De há muito que é assim, mas após o colapso do universo BES este mundo ficou mais exposto e a única forma de ser resgatado era a fuga para a frente. Foi o que aconteceu, como demonstram os negócios inomináveis revelados pela Operação Cartão Vermelho. Que os políticos não se tenham apercebido disto em tempo útil é um erro de perceção preocupante.»
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1 comments:
E dizia-se que era o fado futebol e fátima...muito se mentia naquele tempo!
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