«O debate do Estado da Nação é, em todo os países onde existe com diversos nomes, um daqueles momentos em que os políticos se esmeram. Estruturam intervenções, tentam mostrar-se portadores de projetos, preparam a demolição bem preparada do seu opositor. E é um debate de primeiras figuras. Aquilo que ouvi ontem, felizmente em diferido, não foi um debate do Estado da Nação. Foi um mau debate quotidiano. Com duas exceções.
A primeira: Cecília Meireles, que apesar de um pouco agarrada a casos, foi eficaz no ataque ao tema do momento (há meses, Eduardo Cabrita) e conseguiu traçar uma linha ideológica e programática com António Costa compreensível a propósito do PRR. É perturbante pensar que esta é a deputada que Francisco Rodrigues dos Santos quer substituir por ele próprio, com os seus conhecidos dotes políticos.
A segunda: Catarina Martins, que conseguiu falar de temas relevantes para a vida das pessoas, do SNS à precariedade laboral, com exemplos, números e divergências antigas com o PS, tentando expressamente desviar a fratura do debate para a esquerda. Jerónimo tocou nos mesmos temas, mas com pouca eficácia tribunícia, que num parlamento conta. Só a pobreza das intervenções do PSD, permitiu à líder bloquista dizer “acho que não devemos perder muito tempo a debater com a direita” sem parecer despropositadamente arrogante. Qualquer pessoa que tenha ouvido os deputados do PSD sentiu o mesmo.
Fora isto, no conteúdo e na forma, o debate foi entediante. Sem brilho no estilo, sem propósito no conteúdo. Tirando a saúde e o trabalho, trazidos pela esquerda, e pouco, muito pouco, de economia, trazida pela direita, o país que vive uma das maiores encruzilhadas desde o 25 de abril ficou por debater. Sobre a escola, para a qual esta pandemia significou uns anos de retrocesso, quase não se falou. A intervenção inicial de António Costa, que teve um dia sem percalços, foi programática e de balanço, sim, mas assemelhou-se a um relatório de prestação de contas. A final, de Santos Silva, não deixou memória. Talvez a ausência de Rui Rio tenha ajudado a explicar o desinvestimento. Mas também mostrou que o problema não é ele.
O PSD disse que António Costa está cansado. Na realidade, o parlamento parece cansado. E pelo menos nisso representa bem a Nação. Entre uma pandemia que está a acabar sem nunca acabar, adiando dos projetos quotidianos mais simples aos investimentos mais importantes, e um futuro que se sabe que será difícil e para o qual temos dinheiro, mas ainda mais incertezas, estamos todos derreados. E os políticos acompanham este estado de espírito.
É esse cansaço que ajuda a explicar a queda de popularidade do Governo. O estado pandémico da política está a chegar ao fim e o fenómeno a que os politólogos chamam de “rally round the flag”, que dá força a quem governa quanto se enfrenta uma ameaça externa, também. A realidade vem aí. Todos os governos que, em democracias ou ditaduras, sobreviveram à pandemia vão sofrer. E, naqueles em que não haja uma alternativa minimamente credível, é o próprio regime que sofrerá.
Foram muitas coisas juntas: crise económica, empobrecimento, crises familiares, ansiedade, medo, problemas mentais, limitação da liberdade, atraso na aprendizagem, mortes... Durante quase dois anos a pensar que seriam uns meses. Vai deixar marcas sérias. Que só quando nos sentirmos a salvo vão doer com violência. Estamos a sentir apenas o cansaço. Já não o do início, quando nos uníamos em torno da resistência e repetíamos “vai ficar tudo bem”. Mas o da impaciência e intolerância com tudo. Ajuda a explicar porque tantos acontecimentos coletivos degeneram, em tantos lugares, em violência. Cansaço.
Mas não é só isto. A ausência de alternativa dá a António Costa a arrogância de quem não se sente em perigo. Só ela, associada ao cansaço que o parece impedir de regenerar o Governo que dirige, permite explicar a permanência de Eduardo Cabrita. O problema já não é Cabrita. Desde o caso do SEF que o problema deixou de ser Cabrita. Desse, até já tenho pena. É certo que aconteça o que acontecer tudo lhe irá bater à porta. O problema é um primeiro-ministro que, por teimosia, soberba ou indiferença, não faz o que tem de fazer.
Já não tem nada a ver com amizade. Se tivesse, Costa retirava este fardo terrível dos ombros do ministro. Também não acho que seja uma tática para se entreterem com Cabrita enquanto o deixam em paz. Como se viu ontem, é o seu calcanhar de Aquiles e atinge-o. É o cansaço. O seu, que não tem forças para reagir. O da oposição, que lhe dá espaço de manobra para procrastinar. E o nosso, que estamos concentrados na espera do fim da pandemia.»
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