22.7.21

Estado da Nação? Cansada

 


«O debate do Estado da Nação é, em todo os países onde existe com diversos nomes, um daqueles momentos em que os políticos se esmeram. Estruturam intervenções, tentam mostrar-se portadores de projetos, preparam a demolição bem preparada do seu opositor. E é um debate de primeiras figuras. Aquilo que ouvi ontem, felizmente em diferido, não foi um debate do Estado da Nação. Foi um mau debate quotidiano. Com duas exceções.

A primeira: Cecília Meireles, que apesar de um pouco agarrada a casos, foi eficaz no ataque ao tema do momento (há meses, Eduardo Cabrita) e conseguiu traçar uma linha ideológica e programática com António Costa compreensível a propósito do PRR. É perturbante pensar que esta é a deputada que Francisco Rodrigues dos Santos quer substituir por ele próprio, com os seus conhecidos dotes políticos.

A segunda: Catarina Martins, que conseguiu falar de temas relevantes para a vida das pessoas, do SNS à precariedade laboral, com exemplos, números e divergências antigas com o PS, tentando expressamente desviar a fratura do debate para a esquerda. Jerónimo tocou nos mesmos temas, mas com pouca eficácia tribunícia, que num parlamento conta. Só a pobreza das intervenções do PSD, permitiu à líder bloquista dizer “acho que não devemos perder muito tempo a debater com a direita” sem parecer despropositadamente arrogante. Qualquer pessoa que tenha ouvido os deputados do PSD sentiu o mesmo.

Fora isto, no conteúdo e na forma, o debate foi entediante. Sem brilho no estilo, sem propósito no conteúdo. Tirando a saúde e o trabalho, trazidos pela esquerda, e pouco, muito pouco, de economia, trazida pela direita, o país que vive uma das maiores encruzilhadas desde o 25 de abril ficou por debater. Sobre a escola, para a qual esta pandemia significou uns anos de retrocesso, quase não se falou. A intervenção inicial de António Costa, que teve um dia sem percalços, foi programática e de balanço, sim, mas assemelhou-se a um relatório de prestação de contas. A final, de Santos Silva, não deixou memória. Talvez a ausência de Rui Rio tenha ajudado a explicar o desinvestimento. Mas também mostrou que o problema não é ele.

O PSD disse que António Costa está cansado. Na realidade, o parlamento parece cansado. E pelo menos nisso representa bem a Nação. Entre uma pandemia que está a acabar sem nunca acabar, adiando dos projetos quotidianos mais simples aos investimentos mais importantes, e um futuro que se sabe que será difícil e para o qual temos dinheiro, mas ainda mais incertezas, estamos todos derreados. E os políticos acompanham este estado de espírito.

É esse cansaço que ajuda a explicar a queda de popularidade do Governo. O estado pandémico da política está a chegar ao fim e o fenómeno a que os politólogos chamam de “rally round the flag”, que dá força a quem governa quanto se enfrenta uma ameaça externa, também. A realidade vem aí. Todos os governos que, em democracias ou ditaduras, sobreviveram à pandemia vão sofrer. E, naqueles em que não haja uma alternativa minimamente credível, é o próprio regime que sofrerá.

Foram muitas coisas juntas: crise económica, empobrecimento, crises familiares, ansiedade, medo, problemas mentais, limitação da liberdade, atraso na aprendizagem, mortes... Durante quase dois anos a pensar que seriam uns meses. Vai deixar marcas sérias. Que só quando nos sentirmos a salvo vão doer com violência. Estamos a sentir apenas o cansaço. Já não o do início, quando nos uníamos em torno da resistência e repetíamos “vai ficar tudo bem”. Mas o da impaciência e intolerância com tudo. Ajuda a explicar porque tantos acontecimentos coletivos degeneram, em tantos lugares, em violência. Cansaço.

Mas não é só isto. A ausência de alternativa dá a António Costa a arrogância de quem não se sente em perigo. Só ela, associada ao cansaço que o parece impedir de regenerar o Governo que dirige, permite explicar a permanência de Eduardo Cabrita. O problema já não é Cabrita. Desde o caso do SEF que o problema deixou de ser Cabrita. Desse, até já tenho pena. É certo que aconteça o que acontecer tudo lhe irá bater à porta. O problema é um primeiro-ministro que, por teimosia, soberba ou indiferença, não faz o que tem de fazer.

Já não tem nada a ver com amizade. Se tivesse, Costa retirava este fardo terrível dos ombros do ministro. Também não acho que seja uma tática para se entreterem com Cabrita enquanto o deixam em paz. Como se viu ontem, é o seu calcanhar de Aquiles e atinge-o. É o cansaço. O seu, que não tem forças para reagir. O da oposição, que lhe dá espaço de manobra para procrastinar. E o nosso, que estamos concentrados na espera do fim da pandemia.»

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