22.8.21

O pesadelo de Biden

 


«O grande acontecimento era a retirada americana do Afeganistão. Mas o colapso do exército e do governo afegãos, aliados à incompetência americana, criaram um explosivo foco de crise, que pode passar de Cabul para Washington. “Os próximos dias serão decisivos”, avisa Ian Bremmer, analista de estratégia.

Todas as opções do Presidente Biden eram más. A pior seria denunciar o acordo de Fevereiro de 2020, celebrado entre a Administração Trump e os taliban, prevendo uma retirada militar em Maio deste ano. Significaria reacender uma guerra perdida e o risco de escalada militar.

A retirada é benéfica para a posição internacional dos Estados Unidos. Entretanto, surgiu a catástrofe: uma estranha acumulação de erros ameaça anular os efeitos da retirada, transformando-a em humilhação e abrindo uma crise na própria América. Lá iremos.

A guerra do Afeganistão estava perdida desde o tempo de George W. Bush, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. É inútil repetir factos e argumentos. Quando uma guerra está perdida, resta pôr-lhe fim. Este debate dividiu a elite dirigente americana desde 2009, quando Barack Obama se resignou a aceitar um reforço das tropas para o Afeganistão numa estratégia de contra-insurreição.

A retirada não significa o declínio internacional dos Estados Unidos. Houve um raro “momento unipolar” em que os EUA se imaginaram como hiperpotência planetária. Esse “momento unipolar” acabou com a derrapagem da guerra no Iraque e com a crise financeira de 2007. O fim da “arrogância imperial” não impediu que os EUA continuem a ser a primeira superpotência. Antes significa que não têm força e legitimidade para fazer o que lhe apetece. Hoje, travam uma longa batalha com a China sobre a hegemonia mundial. Hegemonias improváveis num mundo decididamente multipolar.

É muito arriscado fazer comparações históricas. Podemos, no entanto, usá-las a título de ironia. As imagens de Cabul fizeram lembrar as de Saigão em 1975. E o Afeganistão foi apontado como o “Vietname de 2021”. A comparação é imperfeita, porque os americanos já tinham retirado as suas tropas quando o Vietname do Norte lançou a ofensiva geral no Sul.

Na época, a União Soviética terá interpretado a retirada americana como sinal de inexorável declínio estratégico americano. Invadiu o Afeganistão e implantou-se em África. Qual foi o desfecho? Quinze anos depois da queda de Saigão, os Estados Unidos assumiam a hegemonia mundial enquanto a União Soviética se desintegrava.

O ponto de vista da Ásia

É útil interrogar a repercussão da retirada do Afeganistão entre os aliados asiáticos dos EUA. Eles atribuíram o fracasso da “viragem para Ásia” da Administração Obama à persistência do seu atolamento no Médio Oriente. Explica Hiroyuki Akita, analista do Nikkei, o grande diário económico japonês: “Agora, os países asiáticos estão a procurar saber atentamente se o fim do envolvimento militar no Afeganistão afectará a política do Presidente Biden para a região do Indo-Pacífico. Os governos, de Tóquio a Taipé, não acreditam que a agitação no Afeganistão tenha repercussões negativas para o Indo-Pacífico, e não só pela importância geo-estratégica da região. Pelo contrário, saúdam a retirada do Afeganistão na medida em que permite a Washington envolver-se mais profundamente no Indo-Pacífico.”

É evidente que a Rússia e a China procurarão preencher o vazio deixado pela retirada americana. Pequim é um sério candidato, esperando retirar grandes vantagens económicas. Mas a região do Indo-Pacífico substituiu o “grande Médio Oriente” como palco principal da política internacional.

Os países da região querem manter um equilíbrio perante a ascensão da China mas recusam uma ordem regional dominada por Pequim. Há acordos económicos a refazer depois da desastrada retirada americana da Parceria Trans-Pacífico, por Donald Trump.

Acrescenta Akita: “Do ponto de vista da segurança, aliados como o Japão querem desempenhar um papel muito maior. É muito claro. O que falta são medidas concretas dos Estados Unidos e dos seus aliados para estabelecer uma nova divisão das responsabilidades na manutenção da estabilidade no Indo-Pacífico.”

Dirigindo-se sobretudo à Europa, o analista britânico Robin Niblett, director do think tank Chatham House, escreve pragmaticamente: “Os aliados dos Estados Unidos sabem que Washington precisa deles mais do que nunca”.

Por outro lado, tal como o falhanço no Vietname não travou o domínio económico e geopolítico, “também o caótico êxodo do Afeganistão não anuncia um declínio global no século XXI”. Conclui Niblett: “O poderio nas relações internacionais é sempre relativo. E, em termos relativos, os Estados Unidos irão muito mais longe, estrutural e socialmente, do que os dois principais rivais geopolíticos, em especial se trabalharem intimamente com os seus aliados.”»

Do lado da América

“A desastrosa retirada americana do Afeganistão representa a primeira verdadeira crise da Administração Biden em política externa”, escreve Bremmer. “A culpa não pode ser atribuída à declaração de retirada: foi um erro de aplicação, não um erro estratégico.” Aquela que era um a decisão difícil e justa deu lugar a uma catástrofe.

Comentando o desastre, Francis Fukuyama chama a atenção para outro plano: “A verdade é que o fim da era americana começou muito antes. E as fontes a longo prazo da fraqueza e do declínio americanos são mais domésticas do que internacionais.” Após o pico da sua hegemonia, entre 1989 e 2007, “o auge da hubris americana foi a invasão do Iraque, em 2003, quando concebia refazer não só o Afeganistão (invadido antes), mas todo o Médio Oriente.”

Sublinha: “O maior desafio ao estatuto internacional da América é doméstico. A sociedade americana está profundamente polarizada e tem dificuldade em encontrar consensos seja sobre o que for. (…) A polarização já prejudicou a influência global da América.”

O Afeganistão tem sido um tema secundário para a opinião pública americana, focada na covid-19 ou na economia. A retirada das tropas é bem vista num país cansado de “guerras eternas”. No entanto, a situação pode inesperadamente mudar e voltar-se contra Biden.

“O pior ainda está para vir”, avisam correspondentes. Ontem, em Cabul, havia cerca de 10.000 civis americanos a repatriar e talvez 80.000 afegãos com dupla nacionalidade, com a green card ou com um visto. E muitos cidadãos americanos ou binacionais terão de atravessar um território controlado pelos taliban.

O risco de incidentes é altíssimo. Se um americano for feito prisioneiro ou refém, a situação torna-se explosiva, não só em Cabul, mas também na até agora indiferente opinião pública americana. É o pesadelo de Biden, dos seus aliados e, provavelmente, dos adversários. A crise mudaria subitamente de natureza.»

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2 comments:

BELIAL disse...

Se ficar, o bicho pega.
Se fugir, o bicho come.
Biden velha raposa que dizem decente, não joga aos dados.
Nem complexo militar industrial, ensandeceu.
Xadrezes complicados, nos tabuleiros da orbe.
As contas fazem-se ao fim de cada período e circunstância
Guardados estão o bocados, para joguinhos de guerra.
O xadrez dos potentes - usando peonagem alheia.
Jogo sujo, indecente, miserável, desumano - bestial.

Monteiro disse...

Na Guiné às vezes era assim. Tudo a corta mato, era menos perigoso e chegava-se depressa a Bissau.