27.10.21

Entregar o país às mãos da direita?



 

«Ao ouvir a líder parlamentar do PS, repetida pelo ministro das Finanças e outros, anunciar que a falta de acordo sobre o Orçamento entrega o país “às mãos da direita”, lembrei-me de um filme de Woody Allen, Match Point, em que o criminoso não sabe se o seu ato vai ser descoberto ou ficará ocultado, como se fosse uma bola de ténis que, por um fugaz instante, se sustenta em cima da rede, não se adivinha para que lado cairá. Um passe de mágica desse tipo foi ontem evocado, embora num caso conclusivamente (por Jerónimo de Sousa) e noutro soturnamente (o inevitável Carlos César com a sua magia negra). Ora, a incerteza da bola de ténis vem de algum lado e vale a pena perceber como se instalou, ou como leva a dirigente do PS a proclamar a sua derrota antecipada.

Talvez não seja difícil encontrar a resposta. Se estamos nesta confusão no último dia antes da votação na generalidade, que decide o Orçamento, é simplesmente porque, ao não cumprir muitos dos acordos anteriores, o Governo criou uma desconfiança enraizada, mas também porque discutir um Orçamento em corrida num par de semanas é garotice, tanto mais quanto permanecem tabus irrevogáveis para o Governo (a alegação de que a Comissão Europeia não deixa mexer nas regras do despedimento é o mais curioso desses tabus).

Esta espécie de processo acirrou os conflitos, deu pouco espaço a negociações, incentivou os participantes a marcarem as suas posições em público e levou mesmo o Presidente a precipitar o anúncio de um cenário de eleições quando ainda a conversa ia no adro. E, no essencial, bateu num muro, que foi a recusa do Governo em aceitar mais do que ajustamentos pontuais na Saúde e no Trabalho.

É certo que a discussão do Orçamento se deslocou para terrenos diferentes dos anteriores, o que aliás sugere que melhor teria sido que a esquerda tivesse convergido há um ano para o pressionar, com mais tempo e até melhor relação de forças. Assim, não sendo surpresa que o Bloco propusesse medidas estruturantes na Saúde, Segurança Social e Trabalho, pois já o tinha feito tanto ao sugerir um acordo escrito de legislatura que incluísse essas questões, como no ano anterior no debate orçamental, o que o Governo rejeitou de uma penada, a novidade passou a ser o PCP propor neste contexto orçamental medidas que incluem as leis laborais, o que até hoje se recusara a fazer e até condenara como inconveniente.

O tabu das leis laborais ruiu com fragor e o Governo foi forçado a desdizer o seu interdito anterior, embora se limite, em alguns casos, a sugerir soluções estranhas, como a do prolongamento da suspensão da caducidade automática dos contratos coletivos, como forma de evitar o fim dessa regra. É como uma anedota antiga, a de um politico que diz que a caducidade não se aplica, mas a norma que a aplica tem de continuar e é fundamental que continue, pois a lei é para se aplicar ou não.

De todas estas questões, será na Saúde que melhor se verifica a dimensão da incapacidade do Governo em resolver problemas: 17 milhões de horas de trabalho suplementares até setembro, resolvidas com a promessa de pagar melhor a quem faça mais de três meses de horas extraordinárias, 130 milhões pagos a tarefeiros nas urgências hospitalares, blocos operatórios fechados, demissões em catadupa, enfermeiros e outros profissionais em contratos a prazo e mal pagos, a promessa de um regime de “dedicação plena” num futuro indefinido e que aceita o pluriemprego nos hospitais privados.

Acrescentando-se que as promessas anteriores, e foram muitas, não são cumpridas: tínhamos em setembro, para os cem hospitais e centenas de centros de saúde do SNS, só mais 179 médicos do que quando a pandemia se iniciou, com o número de utentes sem médico de família a ultrapassar o milhão. O SNS tem sido meticulosamente triturado pelo ministério das Finanças. Não sei se o Governo imaginava que a Saúde não seria um tema essencial da negociação dos partidos de esquerda, ou que estes se contentariam com algumas vagas promessas de um futuro risonho sem exigirem medidas imediatas que recuperem o SNS e o protejam no futuro. Ora, se Costa pensava que bastava repetir as manobras do passado, enganou-se. O incumprimento dos acordos anteriores deixou marcas irrevogáveis.

Há uma narrativa para justificar esta negociação apressada, é que o Governo tinha um parceiro com quem fazia negócios de cavalheiros e não era preciso contratos escritos. A repetição dessa condescendência, que é uma forma de cinismo destrutivo, como aqui escrevi, só podia conduzir a este resultado, um confronto amargo. Chega sempre um dia em que o que conta são mesmo as soluções e nenhum governo, ou partido, pode resistir ao desgaste de acordos incumpridos, ou da evidência da fragilidade das respostas sociais ou da inconsistência das políticas de longo prazo, no emprego ou na transição energética.

Aqui está então a bola de ténis em cima da rede: se a líder parlamentar do PS antecipava que o fracasso da negociação “abriria a porta à direita”, ou provocaria uma crise política de resultados incertos, porque se colocou nesta situação em que perde sempre, quer perca as eleições (e o fracasso do Governo teria então aberto mesmo o caminho à direita), quer ganhe (o Governo voltaria à estaca zero e seria preciso encontrar novos protagonistas para uma nova negociação no mesmo triângulo)? A surpresa será ainda maior, a verificar pelas conferências de imprensa do Governo para castigar primeiro o Bloco e depois o PCP, mergulhando num passa culpas que é fatal para António Costa, por corroer a sua própria credibilidade e mostrar que não quer o que pode ou não pode o que quer, o que hoje se repetirá no debate parlamentar.

O anúncio da sua própria condenação pela líder parlamentar do PS e vários ministros, porventura aditivados hoje por fogo de barragem, revela simplesmente esta realidade: a direita nunca ganhará as eleições que o Presidente convocará, mas não é certo que o Governo não faça tudo para as perder.»

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