21.10.21

Médicos: ou há exclusividade opcional no Orçamento ou o SNS definha

 


«No momento em que se discute o Orçamento do Estado (OE), cuja decisão pode ditar o futuro político e social dos próximos anos, convém afirmar que é determinante o que se fará com este Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, dentro dele, particularmente com os médicos. Ao contrário do que possa parecer, esta não é uma luta sindical nem corporativa, é a luta pela sobrevivência do SNS.

Há várias distorções nos custos e estruturas dos hospitais, que dizem respeito à demografia médica, aos custos medicamentosos, ao recurso desproporcionado às urgências, mas o principal diz respeito aos recursos médicos, os quais também existem nos cuidados primários.

Em 2009 acabaram os contratos de médicos em exclusividade. Ou seja permaneceram nessa situação os já contratados como tal e deixou de haver novos contratos. Era a crise económica e sobretudo financeira que estava a eclodir e o Governo haveria de mudar em 2011. Para trás, desde 2005, ficavam os anos em que houve maior financiamento para o SNS, mais equipamento hospitalar (informático, laboratorial, de electrificação e nuclear) e tinham ficado contratados em exclusividade os novos especialistas que tinham então trinta e poucos anos. Foram estes que aguentaram o pico da pandemia dez anos depois.

De 2009 até agora, portanto durante 12 anos, nunca mais foram contratados médicos em exclusividade. A exclusividade permitia um salário suficiente e dava ao profissional a disponibilidade de estar com a cabeça ali, e não em dois lados. A partir daí, não só não houve contratos de exclusividade como a contratação de cada especialista recém-formado passou a depender de uma cadeia de pressões que ia do director do serviço ao conselho de administração do hospital, para depois ir à Administração Central de Saúde (ARS), depois ao Ministério da Saúde e finalmente ao Ministério das Finanças. Que alegria quando ele dava o OK! E que tristeza o nosso planeamento depender disto, não haver recursos de acordo com a prevalência das patologias na região e nem sequer com o mérito.

Estes novos especialistas contratados foram ganhar 1200 a 1500 euros líquidos por mês e, para pagarem a casa em Lisboa ou no Porto e alimentarem os filhos mesmo que estivessem acasalados, passaram a ter de ir fazer uns “ganchos” no privado e, portanto, a ter a cabeça nos dois ou três lados. Isto coincidiu com o período de grande baixa no número de especialistas que se mostra no gráfico e é consequência do funil da entrada nas faculdades de Medicina nos últimos governos de Cavaco Silva.



Pensei fazer um artigo apenas com histórias exemplares de médicos para ver se as Finanças e outros decisores percebem (a ministra percebe). Mas encheria muitas páginas e seria insultuoso ter de explicar dessa forma. Porque temos todos que levar isto muito a sério.

Conto só uma história. Uma interna do meu serviço, após o seu curso de seis anos mais um e de cinco anos de interna da especialidade, fez exame e teve a melhor nota a nível nacional. Fiquei radiante quando ela foi contratada e aí ficou no Hospital de Santa Maria (Centro Hospitalar Lisboa Norte). Quando me reformei, muitos dos meus doentes passaram para ela, o que me deu grande segurança. Ficou a ganhar 1200 euros, durante dois anos, com as urgências e um horário de 40 horas. Após 2017 passou a ganhar entre 1500 e 1800 euros incluindo as urgências. Não tinha nenhuma perspectiva de progressão na carreira por concurso. Os exames para consultores finalmente ocorreram em 2021, mas só significam a obtenção do título. Não estava integrada em nenhum projecto de investigação clínica, porque estes são considerados menos gloriosos do que os de investigação base. Era e é uma grande defensora do SNS. Mas o panorama era este e tem três filhos. Foi-se embora para uma empresa privada de saúde, onde é bem tratada e ganha 1800 euros por dez horas, negociando as restantes; não faz urgências. Nesse ano e no seguinte saíram mais duas do serviço pelo mesmo caminho. Uma delas ganha o triplo. Não estou a falar de casos excepcionais. Podia encher páginas com casos de anestesia, medicina interna, pediatria, otorrinolaringologia, ortopedia.

Não é uma luta sindical

Como fica demonstrado, não se trata de uma luta sindical por melhores salários, nem de uma luta elitista em que se podia dizer “lá estão os médicos a querer ganhar mais, quando se vai dar a um reformado dez euros por mês para ele ir lá comprar qualquer coisinha”. Trata-se de impedir o esvaziamento de especialistas do SNS. Para que estas pessoas tenham melhores condições ou há dedicação plena (designação para não ofender as Finanças), ou há o regime das unidades de saúde familiar ou dos centros de referência, em função da produção, ou os novos especialistas desertam. O caso não é idêntico a lutas sindicais (justas) em que há desemprego e bolsa de trabalho. Neste caso não há. Será que não é evidente para quem decide? Se não houver solução, incluída no Orçamento do Estado, o SNS vai definhar. Que este se sabe organizar e planear ficou demonstrado durante a pandemia. Que tem de ter recursos humanos é mais do que evidente. Tratar-se-ia de uma recompensa e era justo. Mas não é isso. Trata-se da sobrevivência de um SNS de qualidade para toda a gente.

Logo entre 2010 e 2015 os hospitais foram defraudados em 276 milhões de euros quando o memorando da troika só pedia 100 e nesse mesmo período o SNS subiu mais 163 milhões no que pagou aos hospitais privados (só serviços hospitalares, sem análises nem hemodiálise).

Os hospitais públicos perderam 500 camas, que não foram repostas. Os hospitais públicos, como sempre, foram custeando os citotóxicos de oncologia, os imunomoduladores, os antivíricos, os hemoderivados e outros produtos igualmente caros, mas indesejáveis para a indústria da saúde. E continuarão a fazer, claro. E também lá continuarão a acorrer os 6 milhões de doentes às urgências por ano, se o OE, e neste caso também o PRR, não introduzir alterações profundas nos cuidados primários. Se isto não foi suficientemente pedagógico para os altos dirigentes, então como é que eu conseguirei explicar aos meus alunos as consequências do esgotamento do pâncreas na diabetes? Todavia, verifico que eles compreendem.»

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