23.10.21

O engano da “dedicação plena”

 

@Joe Fenton

«Quando António Arnaut e João Semedo publicaram a sua proposta de Lei de Bases da Saúde que viria a ser adotada e aprovada em 2019, a redação era clara: “A política de recursos humanos para a saúde visa promover a dedicação exclusiva nos serviços de saúde” – Base XIV; “O Estado deve promover uma política de recursos humanos que valorize o tempo completo e a dedicação exclusiva como regime de trabalho dos profissionais de saúde” – Base XXXIII. Era sobre exclusividade que falavam. António Arnaut confirmava-o em 2017, afirmando que “é preciso recriar as carreiras profissionais [dos profissionais de saúde] como carreiras de função pública”, fazendo com que “haja uma carreira tendencialmente de exclusividade”, semelhante à dos juízes.

Da direita à esquerda, várias vozes têm defendido a opção pela exclusividade dos médicos no SNS, como o bastonário da Ordem dos Médicos ou mesmo o antigo ministro da Saúde Paulo Macedo, que em 2014 lamentava que o Partido Socialista tivesse acabado com a exclusividade em 2009 e manifestava a intenção de a retomar. Tudo isto é sobre exclusividade, não há aqui enganos.

Mas o novo Estatuto do SNS, aprovado esta quinta-feira pelo Governo, não cria nenhum regime de exclusividade para os profissionais de saúde. Pelo contrário, cria uma “terceira via” à qual chama “dedicação plena”, cuja única implicação é a proibição de exercer cargos de chefia em unidades privadas. Trabalhar no SNS e no privado em acumulação, continua a ser permitido. No comunicado emitido pelo Governo nesse dia, esclarece-se, inclusivamente, que os diretores de serviço no SNS passam a ter uma “limitação ao número de horas de trabalho que podem ser exercidas noutras instituições de saúde, em moldes a negociar com as estruturas sindicais”.

Ora, se se pode trabalhar em acumulação no privado, então esta “dedicação plena” não é exclusiva e tão pouco é “plena”. Na verdade é apenas o que a maioria dos médicos já hoje tem no SNS: um horário completo de 40 horas, com possibilidade de serem pagos por trabalho extraordinário, apenas acrescentando a proibição de chefiar outros serviços no privado.

Qual é o problema desta “terceira via”? É que se não exclui a acumulação de trabalho no privado, então ninguém acredita que neste regime os salários sejam majorados, tal como eram no anterior regime de exclusividade. Porque seriam, se não existem contrapartidas? Se os médicos continuarão a ter de correr entre o SNS e o privado?

Só resta uma explicação para esta proposta do Governo: ela serve apenas para confundir as negociações em curso com os partidos da esquerda e os sindicatos, fingindo uma cedência que não existe. Este estatuto não cumpre a vontade de António Arnaut ou a Lei de Bases da Saúde. E pelo meio ainda atropela a língua portuguesa, dando um significado perverso à palavra “pleno”.»

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