24.10.21

O esgotamento do “espírito de 2015” e de António Costa



 

«Há um documentário excepcional de Ken Loach (o cineasta que foi recentemente expulso do Partido Trabalhista, agora liderado pelo inepto Keir Starmer) chamado “O Espírito de 45”, que explica as razões profundas da vitória esmagadora dos trabalhistas nas eleições 1945, derrotando Churchill e o Partido Conservador. Vários historiadores já se debruçaram sobre o fenómeno: não foi o povo britânico a revelar a sua “ingratidão” a Churchill depois da vitória na II Guerra. Foi Churchill que não percebeu que o povo britânico, depois do esforço hercúleo da guerra, precisava que as suas miseráveis condições de vida mudassem. Havia um movimento em crescendo em defesa de um estado social, ancorado no famoso “Relatório Beveridge” – um alto quadro do “civil service” que nem sequer era trabalhista, mas do Partido Liberal – que vendeu milhares de exemplares. Churchill não o leu, nem percebeu o ar do tempo.

O fantasma do comunismo que Churchill agitou na campanha (chegou a dizer que se o seu ex-vice primeiro-ministro Clement Attlee ganhasse as eleições de 45 seria criada na Grã-Bretanha uma espécie de Gestapo) não assustava ninguém. Afinal, na época, a União Soviética era um país aliado de guerra, o Exército Vermelho tinha sido fundamental na vitória sobre os nazis e Estaline até era ternamente conhecido na ilha por “Uncle Joe”, o petit-nom que também Churchill usava em cartas privadas. De qualquer forma, o futuro primeiro-ministro trabalhista Clement Attlee e o seu número 2, o sindicalista e depois ministro dos Negócios Estrangeiros Ernest Bevin, eram pelo menos tão antiestalinistas como Churchill. Attlee lideraria uma “revolução socialista” na Inglaterra, fundando o Serviço Nacional de Saúde e estatizando indústrias essenciais, ainda que a austeridade e o racionamento se tenham mantido. Havia que pagar as contas da guerra e Keynes foi enviado para negociar um novo empréstimo com os americanos. A vida dos trabalhadores britânicos não mudou de um dia para o outro, mas o espírito de 1945 impulsionou o nascimento do Estado Social. Até Churchill, quando volta ao poder em 1951, não toca no NHS nem desata a privatizar tudo outra vez.

Mas porque é que o “espírito de 45” se esgotou e levou à derrota dos trabalhistas seis anos depois? Clement Attlee está cansado e doente, o seu braço-direito Ernest Bevin morre, e o Labour está muito dividido entre uma ala direita que tinha o apoio de Attlee e uma ala esquerda forte liderada por Aneurin Bevan (o ministro da Saúde que fundou o NHS) que acaba por abandonar o Governo em protesto com o corte da despesa pública e a introdução de taxas moderadoras em alguns serviços de saúde.

A esperança que “o espírito de 2015” trouxe a Portugal tem muitas similitudes com “o espírito de 45”, obviamente sem uma guerra. É um facto que a coligação PSD/CDS conseguiu o feito excepcional de ter mais votos do que o PS, mas a formação de um governo a partir da maioria parlamentar correspondeu a um desejo de cortar com o passado da troika. Os líderes dos três partidos perceberam o “espírito de 2015” e conseguiram estabelecer entre si uma relação de confiança. Mas essa confiança esgotou-se há muito, mais ou menos pela altura em que o PS achou que podia conseguir a maioria absoluta e dispensar aqueles que tinham (percebia-se agora) sido apenas instrumentais para chegar ao poder. Se as relações entre Governo e Bloco de Esquerda atingiram o ponto de não retorno no ano passado (e bastava assistir ao último congresso do BE para perceber que era um caminho sem regresso) é muito difícil o PCP ficar colado a um Governo de um país em que um terço das pessoas que estão na pobreza têm contratos de trabalho estáveis. Como disse o deputado António Filipe na SIC-Notícias, um país com uma grande percentagem de descontentes, “é susceptível de levar as pessoas a serem atraídas por populismos”, “como vários países têm demonstrado”. Costa pode pedir muito ao PCP, menos que morra de vez.

É possível que um milagre evite eleições. Mas, a menos que aconteça um segundo milagre – a maioria absoluta que agora parece uma miragem - o esgotamento do “espírito de 2015” é também o esgotamento da liderança de António Costa. E esse é o elefante no meio da sala. Quando Costa criou o tabu dos dois anos, talvez já tivesse consciência disto.»

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1 comments:

Leituras de Salto Alto disse...


Só falta acrescentar que o esgotamento de todos estes "espíritos" é desejável que traga traga também, para a ordem do dia, a discussão do esgotamento do "espírito da ordem capitalista".

nelson anjos