8.10.21

O inexplicável silêncio da Igreja portuguesa



 

«As ondas de choque causadas pelas denúncias de abusos sexuais de menores na Igreja Católica abalaram diversos países, mas essa vaga que gerou indignação e protesto e, ao mesmo tempo, estimulou a necessidade de justiça continua ausente de Portugal. Bem pode o Papa Francisco exigir transparência, denúncia e acção para que a Igreja seja capaz de espantar os seus fantasmas, assumir os seus pecados e seguir em frente; bem podem vários bispos reclamar mecanismos eficientes para escutar as vítimas, identificar criminosos, fazer justiça ou restaurar os valores dos evangelhos; bem podem políticos, jornais, magistrados ou crentes recordar que a verdade é virtuosa e a mentira um atentado moral: nada disto serve para que a Igreja portuguesa ou a vizinha espanhola, onde reina um conservadorismo corporativo ainda mais arreigado, se movam em busca da verdade e da justiça.

Agora que o mundo se espanta ainda mais com a dimensão dos abusos praticados pelos clérigos franceses nos últimos 70 anos, é previsível que os mais empenhados e progressistas bispos portugueses pressionem de novo a hierarquia católica a agir. De resto, a Igreja portuguesa só consegue agir sob pressão. E, mesmo assim, age com o ar de quem assobia para as árvores: as comissões diocesanas de protecção de menores não passaram de expedientes oficiosos para coligir o que se sabe e esquecer o que se desconhece. Em França, houve, pelo menos, 216 mil vítimas e, em países onde a Igreja assumiu com coragem a sua responsabilidade pelos abusos, o número de casos atingiu vários milhares, mas a Igreja portuguesa é um mar onde reina a inocência, onde querer procurar crimes é como dissertar sobre a queda de meteoritos (foi o bispo do Porto, Manuel Linda, quem o sugeriu), onde o medo de assumir a verdade instiga a hipocrisia de querer silenciar.

Numa comunidade de humanos enquadrada por uma hierarquia e regida por valores, é normal haver quem queira apenas esquecer o passado. Mas a prevalência desta opinião na Igreja Católica é errada, porque corrói um activo essencial da sua relação com os crentes: o exemplo. Sem um compromisso com a verdade, sem um esforço honesto para a encontrar, sem declarar vergonha pela incapacidade de a revelar, como diz o Papa Francisco, a Igreja degrada-se no seu próprio pântano. Acreditar que a mentira piedosa ou o esquecimento conveniente são geríveis na era da comunicação digital, é uma utopia. No interesse da sociedade, do país e no próprio interesse dos seus membros, a Igreja tem de assumir que tem um problema grave entre mãos. O silêncio, a tergiversação e a hipocrisia só servem para o agravar.»

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